Texto de julho de 2004 (imagem extraída do Blog do Estadão)
# Vi artistas de rua em plena atividade. Um homem que se auto nomeava Alagoas (provavelmente pela proveniência alagoana) e a sua filha Islânia, a Nêga. O pai fazia questão de falar alto que tinha 36 anos e sua filha 11. Comentou de forma exagerada e machista que tinha 76 filhos de 46 mulheres diferentes.
Quem viu aquelas cenas “artísticas” com outros olhos percebeu que nem a Nêga nem Alagoas são profissionais que se possa aplaudir pelo talento do contorcionismo. A prática circense requer muita disciplina, responsabilidade e segurança. Requisitos que os dois não utilizaram. Porém, valeu a pena até ter dado uma gorjeta aos dois por contorcerem-se de forma necessária perante a crise econômica que o país enfrenta. Se não fosse os sussurros dos mais desconfiados que suspeitaram de exploração do trabalho infantil por parte de Alagoas...
Um misto de “faz-coisas-impossíveis-com-o-corpo” e vendedor de pomada e
sabonete naturais, o artista disse levar a cultura da arte de rua em
praticamente todas as cidades do Brasil. Novamente com aquele orgulho de quem
já muito rodou, ele mostra as fotos tiradas ao lado de Jô Soares e comenta
sobre as passagens de seus shows performáticos pela Ana Maria Braga, Ratinho e
Altas Horas (com o Serginho “Groisam”, como ele diz).
Ao
arriscar a pele se atirando em um círculo com mais de dez facas pontiagudas
espetadas, o artista de rua consegue juntar, em 10 minutos, um público de
aproximadamente 100 pessoas. E tome
chicotada para “despertar” mulher preguiçosa! Esse é o verdadeiro show da vida
de Alagoas, no qual a filha dele é uma atração.
Geralmente
com duas crianças, o artista anda sem parar dentro da roda que ele manda
apertar cada vez mais, “para ficar melhor de ver a presepada”. E o povo vai chegando, comprando uma pomadinha, um sabonetinho e
dando um real para ver a Nêga se enrolando para caber dentro de uma mala. No
final do show, Alagoas diz ter conseguido o sustento do dia para pagar a
diária do hotel e comprar o alimento da família.
O
público notou que a menina estava sem graça, meio que forçada a continuar com o
espetáculo. Mas, tanto ela quanto o povo, fingiu que não havia nada demais
naquilo. Talvez a Nêga já esteja se cansando daquele blá-blá-blá do pai, de
conseguir a vida lhe usando um pouco. Ou talvez fosse só aquela febre - que ela
insistia em mostrar a ele - que a incomodava. Mas Alagoas, sempre
firme, repetia: “o show não pode parar!”... e todo mundo aplaudia.
(Estaria Islânia,
no auge da sua infância, sentindo o peso de ser uma moleta para os pais?)
Pai e filha seguem adiante, com sessões cansativas, expostos ao sol e
à boa vontade do público de rua. Assim como os indigentes que colocam os filhos
na calçada para atrair a atenção das pessoas pelas esmolas, Alagoas e a Nêga dão o tom opaco à tela de miséria na qual se
forma o país. Apesar dele enfatizar que vai ficar só três dias na cidade por
causa das aulas de Islânia, não é isso que ela demonstra.
(Solta os cabelos,
baixa a cabeça e começa as lentas cambalhotas em direção à vida nas ruas... dia
após dia, cidade após cidade.)
Talvez o pai nem tenha culpa por instigar à menina a continuar nos
shows de rua. Talvez ela esteja estudando mesmo. E talvez ela mesma queria
estar ao lado dele. Em mais uma hipótese, o que pode trazer de bons
frutos para Islânia aquelas cambalhotas entre o passar dos anos? O que
realmente de construtivo pode ter na forma como ele pratica esta arte? Chega a obrigar a filha de 11 anos a estar se locomovendo em busca do sustento
da família...
De novo, Alagoas responde com o orgulho que o faz ser
indiferente à vontade da filha: “ela é preparada e treinada”. Teria
alguma ligação desta “arte adestrada” com o próprio marketing que ele sabe
articular para vender seus produtos entre as apresentações da filha? São
questionamentos que só podem ser respondidos com alguma discussão. Nada que
venha a intervir na arte de rua, realizada entre adultos que decidiram seguir
por ela.
Não entre as crianças, que são jogadas na vida de forma
irresponsável. Alagoas joga o seu chicote para cortar pequenos pedaços
de jornal, chegando até a machucar (de leve) a quem se atreve em ser voluntário. De
repente, logo mais, Islânia pode criar a ferida da ignorância. E esta,
a pomada, “feita de extratos vegetais pelos índios do Pará”, comercializada
pelo pai dela, pode ser um paliativo, jamais um antídoto eficaz que cure a
pobreza de espírito.
#valdíviaCosta
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8 de julho de 2012
ALAGOAS E A NÊGA
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