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24 de fevereiro de 2010

PORTA COR, PORTA SINAIS


ZONA DE FRONTEIRA - Nova exposição do artista plástico Júlio Leite será lançada em Fortaleza-CE, dia 9 de março, na qual ele vai mostrar a imagem sem materialidade alguma, na primeira sala, com fotos de torcedores em suas camisas padrões, em dois data-shows, um de costas pro outro; em outra sala, 400 fotos com cores diversas, medindo 20 x 30, uma instalacão de nove metros por três. | imagens: Júlio Leite

KÁTIA CANTON*

Quatro homens estão sentados, lado a lado, sobre uma mureta na via pública. A cena não teria nada de mais, não fosse o fato de que os quatro vestem camisetas de clubes de futebol. Não são clubes populares a ponto de olharmos e reconhecermos imediatamente cada nome e torcida. Ainda assim, a sequência de camisetas singulariza a cena, portando sinais específicos.

O que causa um estranhamento à imagem das camisas é a onipresença de cores, as padronagens, as faixas, os números e as marcas, que atribuem aos corpos uma certa organização espacial.

Quer dizer, organizados daquela forma, portando cores e padrões nas camisas, aqueles corpos passam a territorializar o espaço, enquanto espaço artístico. É interessante aqui pensarmos inicialmente sobre os conceitos de espaço e lugar, que aparentemente possuem o mesmo significado. Na verdade, cada um dos termos designa uma relação singular com as circunstâncias e os objetos. Segundo o sociólogo britânico Anthony Giddens, o espaço é utilizado de forma genérica, enquanto que o lugar refere-se a uma noção específica do espaço. Lugar é um espaço particular, familiar, responsável pela construção de nossas raízes e nossas referências no mundo (1991).

Tomemos como ponto de partida a ideia de que o artista Júlio Leite, ao escolher para seu trabalho um cenário anônimo, não determinado, utilizou um espaço, e não um lugar. Mas, por outro lado, pelo fato de ter transformado esse espaço anônimo numa moldura para abrigar um projeto conceitual e esteticamente organizado, o artista passou a territorializá-lo.

A territorialização da arte implica em seu espaço físico e simbólico. É bom lembrar, aqui, que uma das características que definem a própria existência da arte é o fato de ela ocupar um espaço dedicado a ela. Historicamente, desde o século XVII/ XVIII, a ideia de um território dedicado à arte tem sido pensado de forma consistente, iniciando-se com os ateliês e a fundação dos museus.

Desde então, arquitetura das áreas que expõem arte vem sendo redefinidas e readequadas aos novos conceitos e repertórios que alteraram e seguem alterando a produção artística. Das coleções que recobriam todas as paredes dos edifícios, à aparente neutralidade do cubo branco modernista, pensada como espaço ideal para expor obras modernistas, o espaço torna-se um elemento chave na constituição da própria obra de arte.


CORES - uma das 400 imagens da exposição de Júlio.

Particularmente, a partir de meados do século XX, nos Estados Unidos e na Europa ocidental, movidos por um espírito de tempo cada vez mais comprometido com a experimentação, muitos artistas passaram a questionar a própria condição de institucionalização da arte pelos museus, galerias e espaços institucionalizados.

Buscando transformar o espaço "fora", em oposição aos espaços institucionais de dentro das paredes museológicas, eles partiram para a ocupação do espaço público estetizando-o. Essa ação gerou projetos como a land art, as performances e happenings que envolvem a ação de corpos no espaço, as ocupações de locais públicos ou privados, originalmente não destinados à arte, as instalações, a street art.

Hoje, junto com o crescimento dos museus, com suas arquiteturas e agendas espetaculares, as ruas e os espaços públicos proliferam como suportes para obras experimentais. E, consistentemente, o espaço público, territorializado pela arte, torna-se um não-lugar.

Cada vez mais, nesse momento histórico da chamada globalização ou mundialização, deslocamentos constantes e necessidades de adaptação nos faz sentir que aquele lugar ideal de pertencimento, de aconchego, a referência espacial fixa e confortável, é substituída por uma potência constante de deslocamento, fruto da necessidade de adaptação aos impactos da vida contemporânea.

A arte acompanha essa potência do deslocamento da vida. Lugares fixos, conhecidos ou confortáveis são trocados por não-lugares, lugares de passagem, lugares virtuais, lugares que nos impõem outros tipos de trocas. Como diz o antropólogo francês Marc Augé, os lugares se interceptam mais e mais com os não-lugares. Augé traça esse constante deslizamento entre os lugares de identidade e os lugares de passagem.

Se um lugar pode ser definido como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar, num mundo onde se nasce numa clínica e se morre num hospital, onde se multiplicam em modalidades luxuosas ou desumanas, pontos de trânsito e ocupações provisórias (cadeias de hotéis, terrenos invadidos, clubes de férias, acampamentos de refugiados, favelas destinadas aos desempregados) ou a perenidade que apodrece. O mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero.

Acrescentemos que existe evidentemente o não-lugar como lugar, ele nunca existe sob uma forma pura; lugares se recompõem nele, relações se reconstituem nele. O lugar e o não-lugar são antes polaridades fugidias, o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente. Palimpsestos, em que se reinscrevem sem cessar o jogo embaralhado da identidade e da relação (1994).

No trabalho de Júlio Leite, as camisas de times de futebol portadas pelos corpos, registradas nas fotografias, mostradas em seriação ou projetadas nas paredes, tornam-se flashes, instantes, onde se alterna o anonimato do corpo comum com a singularidade do corpo que porta uma certa cor, um certo emblema ou número.

Aqui, o artista parece nos colocar mais uma questão: na repetição e no acúmulo dessas padronagens e cores, seriadas através das fotografias, seria possível apagarmos a ideia do futebol e dos times e focarmos apenas na dimensão formal e cromática, transformando aquelas imagens num grande quadro abstrato?

Seria possível ao artista transformar os corpos dos torcedores em superfícies bidimensionais que emanam códigos de cores e padrões? Ou seja, apenas em "porta cores"?
Essa questão conceitual aparece inicialmente no trabalho emblemático do artista norte-americano Jasper Johns. Johns, então um jovem artista, concluiu em 1955 uma obra que gerou grande polêmica.

Intitulada Flag (Bandeira) ou Stars and Stripes (Estrelas e Listras) em outras versões, ela simplesmente apresentava as listras e estrelas da bandeira norte-americana, em uma grande dimensão. Utilizando pintura e encáustica, a simples apresentação da bandeira, sem qualquer comentário que se ligue a seu conteúdo, produziu incômodo e atração, dependendo do tipo de espectador que deparava com ela, demonstrando que uma imagem contém inevitavelmente índices culturais e está necessariamente mergulhada em suas conotações sócio-políticas e ideológicas.

Johns abriu o caminho para as latas de sopa, caixas de sabão em pó e imagens de celebridades na obra de Andy Warhol, e inexoravelmente atestou o poder das imagens midiáticas de gerar narrativas próprias. É interessante pensar que no projeto contemporâneo de Júlio Leite, as duas leituras se tornam possíveis. Por um lado, as camisetas de futebol, mesmo sem o reconhecimento imediato dos times e pelo simples fato de conterem números, cores, marcas e emblemas organizados formalmente, tornam-se "porta sinais", à medida as remetem à condição de uniformes esportivos.

Por outro lado, repetidas exaustivamente com a ajuda da máquina fotográfica, elas se tornam superfícies cromáticas, livrando-se momentaneamente de sua carga simbólica. É nesse momento que se tornam apenas "porta cores". Essa simultaneidade parece assinalar a coexistência de aspectos formais e simbólicos, entremeados e misturados na condição da obra de arte contemporânea.

Referências bibliográficas:
AUGÉ, Marc. Os não lugares: introdução a uma antropologia da modernidade.
Campinas: Papirus, 1994.
CANTON, Katia . Espaço e Lugar. Coleção Temas da Arte Contemporânea. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.

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* Kátia Canton é PhD em Artes Interdisciplinares pela Univesidade de Nova York e livre-docente em teoria e crítica de arte pela ECA USP. É professora-associada e curadora do Museu de Arte Contemporânea da USP e autora de vários livros sobre arte e histórias.

3 comentários:

xistosa, josé torres disse...

Ao ler o post e sobre a Galeria Cilindro de Júlio leite, recordei-me que tinha algo muito parecido.

Todos estamos catalogados por cores, lugares, formas de vestir, de comer, de viver, em sociedade ...
temos "leis" mais ou menos brandas para conviver.
Temos a arte que nos acompanha e que nasceu connosco.
Uns conseguem exteriorizá-la ... outros, (a maioria), nem sabem o que sabe o seu interior.
(a redundância é propositada).

Cumprimentos.

Unknown disse...

A sacada da repeticao eh genial! Belissimo eh o artigo tambem! bem interessante repensar o corpo do universo ao nosso redor. A psicogeografia eh super legal e, tanto quanto ela, a retomada de espacos tradicionais de exposicao artistica por trabalhos conceituais que "quebram as regras" do espaco. Como o Julio trazer as imagens da rua pra dentro de uma sala de exposicao. Genial!

De acordo com disse...

Julio é soft demais.=)