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8 de março de 2010

RECORTES DE MENINA


AS IRMÃS - As duas das pontas precederam as duas do meio. As mais jovens entrelaçadas e reavivadas pelas matriarcais figuras que instigaram a vida feminina. Para homenagear tais ilustres figuras mergulhei num conto empoeirado de 2003. Aqui as denomino apenas mãe, tia e irmã, pra fugir da rotina dos nomes | imagem: Roberto Lucena

VALDÍVIA COSTA

CAPÍTULO I - ETERNA AUTORA DE NOSSAS VIDAS

Uma das recordações infantis que me cercam hoje é das rosas de minha mãe. Tão belas e perfumadas quanto ela, a mãe seridoense. E sempre muito bem cuidadas. Observando minha mãe cultivando essas belezas naturais (dela e das plantas) comecei a ser cuidadosa também comigo e com minhas coisinhas. Aquele capricho dela ao espalhar uma belezea singela pela casa me deixava fascinada. Fui criando o hábito de arrumar minha gaveta, minha caixa de brinquedos e até meus origames tinha uma pasta organizada e elogiada.

Nessa época, minha mãe era apaixonadamente calma e nós, os três filhos, muito distintos em comportamentos. Naquele tempo, de descoberta para mim e de introspecção para ela, eu a via como uma deusa. Nunca mais eu senti admiração por uma mulher como senti por ela naquela época. Eu fazia questão de ser o que ela quisesse, apesar de não entender nada de futuro e outras coisas que ela falava. Mas existia ali a entrega total de uma mulher a outra, de uma filha a uma mãe.

O ser que ilumina tudo e o que se sente abdusido por ela. Sem demagogia, sem interesse ou sem qualquer noção de perigo ao se render assim. Eu me orgulhava quando me confundiam com ela. Achava que estava me parecendo com uma mulher bonita, que sabia alimentar flores e deixá-las igualmente lindas. Porque isso para mim era o padrão máximo de beleza e soberania feminina. No universo masculino não havia cor, perfume ou forma. Mas no meu mundo, mãe e natureza estavam acima do bem e do mal.

Questionar minha mãe? Nem morta! Ela falava e eu concordava. Ela fazia e eu copiava. Um amor incorruptível. Naquela encantadora época nem TV tinha chegado em casa de pobre. Talvez por essa falta de informação só tenha vindo enxergá-la com os olhos da crítica depois que minha mente expandiu à procura de livros. Nesse momento, os programas televisivos e revistas falavam do diálogo na educação dos adolescentes.

Como senti falta de chão quando percebi que minha querida e admirável mãe era voltada ao monólogo. Nossas desavenças começam com os pais justamente no ponto em que os mais novos se deparam com o conhecimento. Nem os pais querem ceder ao novo, nem os filhos cogitam a possibilidade de haver certeza em pensamentos "arcaicos e estagnados". Ainda lembro, depois de toda a revolução que foi crescer, tornar-me adulta e mãe, daqueles puxões nos dedões dos pés para acordarmos e irmos a escola. Acordávamos com um largo sorriso de mãe confortando uma vida de batalhas.

Minha mãe vive num mundo próprio de divagações e sonhos sobre a realidade. Procuro não mais chocar nossos conhecimentos e não subestimo mais a inteligência emocional que a move, incansavelmente, para a proteção materna. Aconchegante forma de carinho é o modo ingênuo e totalmente dela de aconselhar-nos ou vigiar-nos, como eterna autora de nossas vidas, editando, corrigindo e difundindo nossos comportamentos.

CAPÍTULO II - TIA E SEUS MISTÉRIOS EM CAIXAS

Como não ser mulher precocemente vivendo cercada de mulheres tão fortes e poderosas? Outra figura que contribuiu para minha formação foi minha tia materna. Desde que me entendo por gente, "Tia" sempre viveu conosco. Acho que já ouvia sua voz estridente, anasalada, cheia de cuidados, desde o tempo em que estava na placenta da minha mãe.

Fiz tantas fantasias a respeito de seus mistérios. Ela sempre escondia um pouco a sua vida dentro de umas caixas e eu tentava espiar quem a fazia sorrir quando ela revirava essas coisas. Bom mesmo eram os passeios com ela na feira. Provando um pouco as frutas e esperando o tão sonhado momento dos doces. Como o chiclete que ela me dava a caminho de casa era gostoso... um tutti-frutti cheiroso e macio!

Ouvíamos suas cantigas de ninar até bem crescidos. Nada era pior do que não a ouvir cantar para dormir. Tinha dias que ela estava melancólica, cantava umas músicas antigas. Outros, ela tirava umas cinco músicas de Luiz Gonzaga; noutros eram as tradicionais cantigas de ninar, com sua interpretação pessoal, imitando as cantoras do rádio.

No almoço, os pratinhos sempre arrumados por ela, que adorava mimar a gente nessa hora. Rodelas de banana cortadas no círculo maior do prato e a carne assada no círculo do meio. Tudo isso por cima de um prato de feijão com arroz de leite, misturado feito rubacão. Essa arrumação parecia enfeitar as nossas vidas, além de despertar o apetite.

Como podia um coração caber tantos sobrinhos e ela distribuir amor do mesmo jeitinho a todos? O interessante era observar o parentesco nada em comum com minha mãe, sua irmã. São totalmente diferentes! Minha mãe é um pouco maior e morena, tipo índia, de olhos castanhos escuros, possessiva, um pouco materialista. Já a minha tia é baixinha, de pele clara, olhos castanhos claros e totalmente livre. Se pudesse, tia dava o corpo aos outros e vivia em energia, vagando por aí.

As únicas irmãs de uma família de quatro irmãos, com apenas três vivos. Por isso, quando se perguntava à tia porque ela nunca casou, teve filhos ou morou sozinha, ela dava de ombros e dizia rispidamente, como as mulheres seridoenses mais velhas: "porque Deus não quis!" Se bem que, quando crescemos mais, descobrimos o real motivo que a fez escolher morar conosco. Mas isso é outra história.

Tia foi uma fortaleza que nos manteve unidos. Sempre nos deu amor procurando achar o amor dos filhos que não pode criar em nós, seus sobrinhos. Era uma figura que me fazia refletir sempre sobre a tolerância e o abandono de objetivos próprios para a subserviência do sentimento familiar. Olhar para nossa casa, nossa família, e não lembrar de tia movendo-se dentro delas, com seus resmungos rotineiros, soa-nos estranho e oco.

CAPÍTULO III - BONECAS DE PANO E BIQUINIS DE TECIDO

Tinha um universo feminino riquíssimo na minha vida de menina. As bonecas de pano e os biquinis de tecido eram confecionados em casa mesmo, dos restos de panos das costuras de minha mãe. Minha irmã mais velha já costurava bem. Minha mãe fazia questão de nos formar prendadas para o casamento ou vida independente. Então era incumbuda a irmã mais velha ensinar o que aprendia a irmã mais nova.

Crochê, bordado e outros artesanatos não me atraiam. Minha irmã adorava tudo, fazia com ternura o crochê e ficava tudo lindo. Eu não conseguia. Éramos tão diferentes que ficava pensando se realmente éramos irmãs. Seria eu mesma filha adotiva?

Ela era tão recatada e eu tão rueira. Ela adorava o dia, dormia cedinho e eu já dava indícios de uma vida boêmia na infância, assistindo a filmes de madrugada, com uma insônia. Está certo que há uma diferença de idade de cinco anos, mas ela, ainda assim, tentava ao máximo fazer parte do meu mundo acanalhado. E eu gostava daquela história de ser mocinha. Sempre dava um jeito de escutar a tal conversa dela, de adolescente.

A melhor forma que achei de agradá-la foi usando suas roupas para parecer mais chegada dela. Com as reclamações, desisti. Fazer o quê! Paciência, né? Um dia eu iria andar mais com ela, iríamos conversar mais sobre coisas do mesmo interesse... Foi um engano. Minha irmã engravidou aos 15 anos e eu perdi a companhia. Eu não tive tempo para aproveitar a vida com ela.

Na primeira infância ficamos afastadas. Eu morava no sítio com os pais, ela na casa da avó paterna na cidade com meu irmão, por causa dos estudos. Nos econtrávamos apenas nos fins de semana. Brincávamos de boneca na casa da madrinha da minha irmã, em frente à casa de minha avó. O porão das bonecas. Todas estavam ali, inteiras, despedaçadas, novas, velhas... Mas a diferença de idade sempre nos deixou, nessa época, separadas, em grupinhos distintos, das meninas maiores e das menores.

Ainda lembro dos presentinhos que ela me dava no Natal: colarzinhos de continhas cloridas que usei até a adolescência. Acompanhei o nascimento e crescimento dos meus dois primeiros sobrinhos graças a ela. Como a maternidade amolece a mulher! Pude ver a relação sincera dela com os meninos, o amor, o cuidado, o zelo...

Uma nova forma de orientação familiar surgia a minha frente. Pude comparar a filha, minha irmã, passar para a condição de mãe de família. Isso foi uma transição feminina interessante. Ela foi pra sua própria casa, onde eu adorava estar, com seu cheiro de novidade. O próprio quarto dela era agradabilíssimo, com seu cheirinho de nenem e de vida nova começando. Minha irmã abriu uma porta para outro mundo e eu cheguei junto, para brincar com ela de realidades diversas.

3 comentários:

Chell disse...

Fiquei fantásticamente amolecida, deu até uma inveja boa.. =D Obrigada por nos deixar caminhar por suas lembranças de menina.

Chapa 2 - Valorização e Luta disse...

Nêga, que delícia de texto... Num primeiro momento pensei, "ai que extenso", nessa correria e tempo de escassez de tempo, fiquei receiosa em começar a ler, mas o texto foi escorrendo pelos meus olhos e amolecendo minha rigidez comigo mesma e me dei a chance de deliciar-me com sua história... e achar os pontos em comum. As rosas, fizeram parte de minha infância principalmente nos dias das mães e aniversário de casamento dos meus pais. Porém, o dono da roseira era meu pai, que sempre cuidadoso, em datas especiais, acordava cedinho para roubar de si mesmo um rosa e dar de presente a minha mãe, que apesar da tradição ainda fazia a mesma carinha de felicidade como se fosse a primeira rosa de sua vida...
Seu blog é sempre uma caixinha de surpresas... com palavras organizadas de forma impecável e histórias apaixonantes como você minha amiga.
Amei.

DAIANA disse...

Ah Val, parecia que vc estava aqui comigo contando pra mim , eu escutando como antes... eu lembro de vc contando suas historias e eu ficava mergulhada no teu mundo misturando minhas descorbertas de adolescente com tuas experiências, era tão bom!!eu lembro de muitos momentos, como era bommmmm enquanto vc narrava a historia eu eu rezava pra nao chegar no final, eu podia acreditar em qlq coisa que vc falava de tao maravilhada que eu ficava!!kkk saudades...