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6 de julho de 2010

CENTENÁRIA NATHÉRCIA


INSISTENTE: Gastou seus dias a fiar a educação como todo bom artesão, pegando a linha com delicadeza, colocando-a entre os dedos, trançando-a de forma perfeita, mantendo igual o design da vida longa e dedicada à vida. | imagem: Confissões de um enigma

VALDÍVIA COSTA

Viver é resistir. Seja por que tempo for, a vida é repleta de vontades, a gente é quem escolhe qual seguir. Quando não se tem mais pressa, se caminha lento, mas vivendo. Quem consegue prolongar a vida até onde as forças findam? Lembro de Nathércia e seus cabelos, pele e roupas brancos. Sentada numa cadeira, fitando o chão, estranhando pessoas do novo século. Ela, que viu gente passando do século 19 ao 20 e já espreitava o 21... era muito enfadonho ver as transmutações, hábitos e valores virando pelo avesso.

Visitei Nathércia Cunha de Morais, "a professora que criou a palmatória em Jardim do Seridó-RN", quando ela ia completar seus 106 anos, em 2004. Morreu em 2008, com 110 anos, a idosa que mais tempo viveu na cidade. Na época, ela me disse a data de nascimento: 25 de julho de 1898. "Vivi em cima dos costumes da moral e do respeito do século XX. Eu era quem mandava na sala. Quem não quisesse aprender e quisesse fugir da alfabetização, apanhava!", relembrou.

Mesmo com ar dramático de severidade, Nathércia era encantadora. Aposentada desde 1967, ganhou o título de "professora do século" em 2001. Uma de seus 10 netos que seguiram a carreira de professor, Terezinha Morais Neri de Oliveira, 59, foi quem cedeu gentilmenta as falas mais emocionadas da avó. Os 18 filhos de Nathércia não quiseram saber da vida de professor.

Mas nesta visita, ela estava zangada porque tinham dado-lhe um banho muito cedo e o frio na idade em que ela estava castiga forte. Mas conversou. Quase cega, achava bom receber visitas porque passava o dia deitada numa rede. Pelos relatos de Terezinha fiquei a imaginar a vida dessa que foi a primeira pessoa a alfabetizar meus antecedentes jardinenses.

Nathércia e seus rompantes de autoritarismo nos sítios Sombrio, Cabaceiras e Três Irmãos, zona rural extrema e machista. Devido às dificuldades, ela passou um bom tempo dando aula em casa. Meninos e meninas analfabetos chegavam de todas as casas. Era tanto aluno que a professora separava os pequenos dos grandes pelos cômodos. E ainda precisava de ajuda na hora da educação física. Aí entrava os filhos de Nathércia. Numa sala só, tinha dias dela ensinar conteúdos da 1ª, 2ª e 3ª séries.

Imagem: Camiseteria
"Eu ensinei tanto nesse mundo, ensinei tanto menino na minha vida que ninguém acredita", dizia Nathércia, orgulhando-se da profissão. Casou-se com Rufino de Morais aos 19 anos, em 1917. "Considerava a maior façanha do mundo ter conseguido instruir os alunos a conhecerem a luz que clareava as trevas da ignorância... o saber a iluminá-los", poetizava. Na época (como ainda hoje em dia) em que essa professora torpedo atuava, o "ganho" era pouco e ela associou essa profissão a de costureira.

Em 1947, aula numa escola noturna. Alfabetizou adultos à luz de lamparina com querosene. Mas continuou trilhando os poucos caminhos existentes e conseguiu atuar pelo município, pelo Estado e como professora particular. A missão de levar adiante o conhecimento não foi fácil.

"Certas vezes precisei ser valente, principalmente no que eu queria, porque eu ensinei mais de um ano pelos sítios de Jardim sem ganhar um tostão. Desanimei. Mas tinha o desejo de tirar o povo do analfabetismo. É muito doloroso ver a pessoa colocar o dedo no papel. Se eu pudesse continuava ensinando para pôr fim nisso", desabafou Nathércia a sua neta, que transcreveu vários desses depoimentos em suas pesquisas sobre a educação.

Foram 66 anos ensinando Português, História, Geografia e Aritmética, que é "a ciência elementar dos números, que trata dos algarismos", como ela gostava de explicar. "Um bom professor, além de enérgico, tem que ser de muita utilidade para o aluno e fazer tudo o que pode e estiver ao seu alcance".

Quando Nathércia morreu deixou 80 netos, 137 bisnetos e 25 tataranetos. Sementes que se espalharam pelo Brasil e pelo mundo com pedaços dessa história de amor à educação atrelados aos seus DNAs.

3 comentários:

Toninho disse...

Nathércia era a pura gloria da vida.

Anderson Ribeiro disse...

Nossa que história bonita! Amor a profissão, dedicação e atenção ao cidadão. Ela sim, conseguiu mudar a realidade de seu ligar com seu talento. Se estivesse viva, com certeza, ela se emocionaria com seu texto. Ah, eu já havia lido o texto do Assucar. V~e lá que tem um depoimento meu. Beijos!

De acordo com disse...

Dona Nathércia era como uma água-viva, às vezes. rsss mas, com certeza, foi uma das pioneiras jardinenses na busca pelo saber. Nós deveríamos nos espelhar nela, guerreira das palavras, defensora da alfabetização... Ah, quantas Nathercias não precisaríamos para mudarmos alguma coisa no mundo! 0/