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30 de junho de 2010

MATADORA


"PODEMOS FAZER ISSO" - Pensem com a fúria das trocentas mulheres espancadas, trucidadas e assassinadas... agora virem-se para os agressores e matem! (nem que seja psicologicamente). | imagem: Mis novelas

VALDÍVIA COSTA

Não sei o que fizemos para merecermos a violência como um presente de fim de relação com um homem. A morte se encantou por nós, seres femininos, como por niguém. As estatísticas são alarmantes. No Brasil, a cada 15 segundos, uma mulher é agredida. Elas morrem nas mãos dos companheiros como numa rotina, independente da cor ou classe social.

Atualmente vemos duas recentes batalhas da polícia para desvendar os crimes contra as mulheres. A primeira, a advogada Mércia Nakashima, de 28 anos, foi encontrada morta com um tiro, afogada no próprio carro, em Guarulhos-SP, e pode ter sido vítima de um ex-policial. A segunda, Eliza Samudio, de 25 anos, desaparecida em Belo Horizonte-MG, que pode ter sido assassinada por um jogador de futebol.

Antes delas, lembramos da paraibana Íris Bezerra, 21, esquartejada no Rio de Janeiro por um pernambucano. Os números daquelas que são brutalmente mortas são maiores que qualquer vontade de sobreviver. Por que morremos com tanta violência? Nas pesquisas na internet por "mulher assassinada", o resultado são ocorrências das mais escabrosas. Por que merecemos machadadas, pauladas, estupros múltiplos, espancamentos e torturas?

Seríamos más na essência e estaríamos ameaçando os homens como nossa feminilidade? De acordo com minha experiência de reportagem de mais de três anos na área policial, não conheci nenhum caso de assassinato de mulheres em que a vítima tenha reagido. Talvez uma proteção tola, de levantar os braços na hora dos tiros. Ou, no desepero de se salvar, uma corrida, gritos, xingamentos, interrompidos com o estrangulamento.

Mas nada que venha a machucar o agressor. Nada que venha a atentar contra sua vida ou sequer provocá-lo. Por isso, pela falta de motivos iguais, de violência ou de dor, os homens que matam são covardes, meras representações do mal que habita o humano. São esboços imcompletos dos monstros guardados durante anos de insatisfação de vida ou de profissão ou de gênero ou de repressão... Para eles, matar a nós é o escape da confusão mental que projeta uma traição ilusória ou mesmo um ódio incontrolável do nada.

Não sou, nem de longe, afável com esses 'suspeitos'. Eles merecem morrer. Se pudesse, aplicaria contra os agressores o código de Hamurabi ("olho por olho"... arrancaria os dois, depois a língua, os dedos, um a um...). Enfim, pensar nesses culpados, que saem a maior parte ilesa, muitas vezes até inocentados pela corrupção judicial, me causa um instinto sanguinolento.

Serei igual a eles? Creio que sim. Afinal somos humanos. Mas com a diferença que, justiceiramente, faria o mal para quem o disseminou. Aplicaria a pena máxima para quem fosse julgado com confissões frias e sórdidas. Até esses escapam da punição. Sim, eles confessam. Os motivos que dão são tão irrelevantes quanto suas existências. "Senti ciúme", "não queria que ela fosse embora", "amava demais aquela infeliz"...

Escutei cada declaração! Como são frios e brincalhões esses assassinos. Riem de tudo, até da morte planejada. Porque saem ilesos das situações. Prisão é pouco para quem mata com essa selvageria. Pior: contra vítimas indefesas, que nem de longe poderiam aplicar a mesma força irracional e a mesma bestialidade contra seus agressores.

Imaginem, eu com poder de matá-los! Uma vingadora de todas as mulheres assassinadas por estas bestas. Chegaria nos momentos cruciais e bateria um papo com esses assassinos. Uma conversa verticalizada, eu diria. Sem chances de defesa. Porque para quem mata sem motivos, com 'requintes de crueldade', como prega o jargão policial, eu não daria vez nem voz.

Somos capaz: Ong Graúna - educação e cultura de gênero

INSTIGUE-SE!

27 de junho de 2010

TERRENO FOFO


OPRIMIDO: Vagar depois da queda, à procura de consolo ou de refúgio. Texto de maio de 2005, um ano confuso. | imagem: Antônio Amaral

VALDÍVIA COSTA

Temos medo do amanhã porque o hoje nos revela a certeza e o que virá depois é terreno fofo, que os passos não firmam caminho. Mas essa confiança de estarmos vivos agora não é sólida também. É ameaça constante, já que a morte nos espreita e as dificuldades a serem superadas diuturnamente nos esmorecem.

A vida demora a se mostrar estável. Temos que atravessar desertos áridos de insconstâncias múltiplas até acharmos um paliativo que nos dê um segundo fôlego e nos prolongue a sobrevivência. O problema que cada um carrega parece ser maior do que o enigma que todos perseguimos, farejando respostas.

E a cada dia fica muitíssimo difícil enxergamos bons motivos, boas causas e boas pessoas. Somos seres infinitamente insatisfeitos e tristes. Buscamos uma felicidade ilusória, moldada pelas nossas invenções, como a televisão. E nem trabalho nem amor nos compensa pela falta imensa de uma realidade plastificada, colorida ao extremo.

O que poderíamos pensar e construir para livrarmos nossos descendentes dessa frustração, que parece crescer desmedidamente ao longo dos séculos? Termos escrito nossa história em livros, manuscritos, tratados, não impermeabilizou o mal-estar. Descobertas, avanços e criações. Nada parece modificar nosso receio de desaparecer no universo, que nem sente nossa existência microscópica.

Ficamos moldados no mundo como enfeites de quarto ou bibelôs de viagem. Nada transmite fé quando o assunto é o humano. A inteligência se desdobra em conhecimentos segmentados, diluidos em especificidades, fracos em essência. E isso impede de nos reconhecermos, nos projetarmos. Quanto mais semelhante, menos confiável.

26 de junho de 2010

100 MIL MUDAS


REFLORESTAMENTO: Até os lenhadores estão se conscientizando de que ser ecológico é o que vai salvar a vida terrestre. | imagem: Arionauro

VALDÍVIA COSTA

Se elas falassem diriam "chegamos!", com aquele ar de quem é novo, dotado de força e vitalidade. Elas foram se afixando nos terreiros, quintais e até varandas, dependendo do tamanho. Pequenas, porém de grande utilidade, as mudas são projetos futuros. Em Campina Grande, elas invadiram a cidade esta semana. Com 100 mil mudas, a vida será diferente?

Como elas esperam atuar num lugar que não aparenta precisar delas? Talvez um pouco de cuidado por parte de quem se responsabiliza em pegar uma delas e levar para casa. É delas o dever de crescer, florar e se reproduzir neste meio urbanizado e poluido. Só que, do jeito que a vida anda nesta cidade, fico a pensar se elas conseguirão.

Digamos que elas passem pelo mesmo processo das tartarugas. Nascem milhões e apenas 10% ou muito menos sobrevivem. As mudas não falam, como as tartarugas. Não sabem técnicas de defesa contra predadores. Além deles, existem humanos perfeitos, que falam, escutam e matam as mudas. Muitos nem sabem para que elas servem. Pensam que são inúteis.

Uma coisa é certa: mais importantes do que humanos perfeitos elas são. As mudas são pensamentos sustentáveis que migram de uma cabeça para outra insuflando hábitos diferenciados. Cria-se uma nova rotina em torno de uma muda. O acordar na hora que ela precisa, o dar de comer, o ajeitar e o habitat nos ensinam a viver diferente.

Ou pensam os humanos perfeitos que basta levar uma muda pra casa e deixá-la se desenvolver que ele já contribuiu para o equilíbrio mundial? Não. As mudas são até fáceis de achar, como disse Arnaldo Antunes em relação às árvores, pois elas também ficam plantadas no chão. Mas descobrir como elas sobrevivem, depois de cativadas, é outro problema que necessita da sensibilidade racional.

Pois foram para os lares, essas 100 mil mudas, com uma missão: melhorar o clima e embelezar mais as ruas. Plantas que têm potencialidades diversas, como dar de comer e de viver aos pássaros. Mas que são limitadas em suas funções devido à ignorância humana em relação à flora. Ah, se essas mudas falassem...

22 de junho de 2010

"QUEIRAM-ME..."


DESLEMBRADA - Quando o que fizemos some da nossa memória, como um refúgio, um acalento do retorno negativo que a vida trouxe. Texto de agosto, num cotidiano factual de 2003, baseado em fatos reais. | imagem: Paraíso Niilista

VALDÍVIA COSTA

Longos 40 anos passaram e lá estava Alzira desbotada. Hoje, ela era uma foto amarelada largada pelos cantos, pelos seus dois filhos. Como se não bastasse a velhice, este estado de impossibilidades, ela agora aprendia a lidar com aquele peso. Interrogava-se, dia e noite, o motivo do abandono. Por que seus filhos sairam da sua vida sem dar explicações?

O abrigo para anciãs não era ruim. A comida era boa, servida quentinha; as roupas eram limpas, cheirosas e sempre tinha companhia pra conversar ou dormir. Mas ela sentia uma pertubadora tristeza. Era como se todos os seus anos de maternidade tivessem recebido um castigo. Naquele quartinho pequeno, se balançava sentada, refletindo a punição que sentia não merecer.

Seria injustiça mesmo o que os filhos cometeram? No último contato, Alzira recebeu uma carta de Regina, a filha que morava em Salvador e tinha tido o primeiro filho. Aquelas poucas linhas eram um presente. Mas bombardeou em resposta à carta milhares de questionamentos sobre a distância e o silêncio intermináveis. Não houve resposta durante os dois anos seguintes.

Fernando partiu ainda adolescente. O mundo sempre o atraiu e, nas últimas palavras ao telefone, ele foi claro em não querer voltar à Campina Grande. Dele, ela nem esperava o último cartão de Natal, há cinco anos, com frases curtas e frias, talvez já advertindo o sumiço.

"Tanto carinho e preocupação com a educação, cuidando das doenças que me afastavam da delegacia... tudo em vão", pensava a octagenária Alzira. Hoje só restava seu silêncio e o receio da morte por trás da cortina surrada. A certeza do desamparo é um vento gélido que passa a mão nos seus cabelos brancos e sussurra um próximo fim nos seus ouvidos.

Como crente em Deus e ciente da velhice, ela até acreditava ter feito algo de muito ruim e, por isso, talvez, merecesse o desprezo da prole. Mas ela não conseguia lembrar o que aconteceu. Dois filhos, dois castigos. Assim foi a vida para Alzira.

"Como será a fisionomia do meu neto? Outro dia ouvi-o me chamando: vó! Ainda olhei repetinamente para o portão do abrigo. Mas era só minha velha imaginação querendo vê-lo", constata, melancólica. A noite para ela sempre terminava com dúvidas. O dia geralmente iniciava com um apelo velado, daquilo que ela nunca pensou pedir repetidas vezes...

17 de junho de 2010

"MORO NO MEU SAPATO"


INQUILINO: De tanto circular e ainda ter sede de mais história, o artista é múltiplo e mora onde a música está. Ou seja, em todo canto. | imagens: divulgação

VALDÍVIA COSTA

A música brasileira já chegou a um padrão planetário de consumo. Bem absorvido, o som nosso de cada dia é tendência na chamada word music, ecoando nos aparelhos eletrônicos de terras distantes. Vez em quando, músicos nordestinos circulantes chegam por lá. Um deles, o multinstrumentista pernambucano Jam da Silva, usou a expressão "moro no meu sapato" pra dizer que cria sonoridades no mundo para o mundo.

Além da habilidade com percussões criativas e orgânicas, Jam tocou com o DJ Dolores na Orchestra Santa Massa, que lançou o álbum Contraditório? e foi o melhor disco de Word Music da BBC Awards (2002). No cinema participou (tocando e compondo) nos filmes Os Narradores de Jave, O Rap do Pequeno Principe, entre outros. Recentemente teve suas músicas gravadas por Roberta Sá (O Pedido), Elba Ramalho (Gaiola da Saudade), Marisa Monte e Marcelo Yuka (Desterro).

Mesmo com a respeitada trajetória e a agenda cheia, o artista não dispensou essa conversa, iniciada pelo facebook. Ele expôs sua visão de mercado e falou da composição do primeiro CD solo, o Dia Santo. Jam não quer ser apenas a estrela, mas um céu de possibilidades "num mercado em crescimento, novo e que ainda não está consolidado".

DE ACORDO COM "- O seu trabalho Dia Santo mostra uma pegada cautelosa na produção musical. Com arranjos bem arrumados, sonoridades diversas que se combinam bem. Quanto tempo você levou pra chegar nesse ponto e qual a realização mais importante da sua carreira?

JAM DA SILVA - Foi ao longo de um ano e meio que eu e o produtor Chico Neves (O Rappa, Lenine, Los Hermanos) produzimos o album Dia Santo, que foi amadurecendo aos poucos, sem pressa... Foi uma grande alegria arregimentar os músicos e entender de perto todos os processos que fazem parte do trabalho que é fazer um disco. Os amigos estavam sempre do lado. É incrível como as pessoas se chegam naturalmente e se entregam de maneira muito especial. Na minha opinião, o processo criativo é tão importante ou mais que o resultado final, além de ser uma grande realização estar fazendo um primeiro disco, depois de anos de estrada, colocando em prática essa vivência e aprendizado que tive em coletivos anteriormente.

" - Você é múltiplo, faz percussão, compõe e canta. Essa facilidade em arranjar as sonoridades, de maneira diversificada e marcante, ajuda ou atrapalha na hora de selecionar as composições de um novo CD? Por que executar tantas "tarefas"?

Na música você precisa se doar muito e eu amo música. Gosto de estar envolvido com ela intensamente. Isso é muito natural em mim, tenho muito prazer, pois é um grande laboratório. Usamos o estúdio como um instrumento extra. Na hora de selecionar as músicas acho que só ajuda, pois você vai achando um fio condutor pra contar uma história, juntando tudo num só lugar.

" - Percebe-se pelo seus perfis virtuais que você é músico do mercado indie. Em quais Estados (ou países) você mais atua, como músico instrumentista? Você trabalha em outras atividades artísticas como a produção cultural, teatro etc. e incentiva essa dinâmica do artista "faz tudo"?

JS - Nesse momento, nessa geração, temos mais é que fazer muitas coisas mesmo. Antigamente tinha o empresário, o produtor, o artista. Hoje em dia tem o empresário fazendo as vezes de produtor e o próprio artista também fazendo algo relativo à produção. O bom é justamente estar envolvido em várias tarefas e não é por acaso. Você hoje só tem essa opção, que é fazer tudo para conseguir seus shows, suas compilações, suas turnês, sua mídia. Não temos mais o suporte que as gravadoras davam antigamente. É um grande aprendizado e desafio. Meu trabalho pode ser indie na dimensão da distribuição do disco, mas não no comportamento. Sou um músico popular que está dentro de um mercado em crescimento, novo e que ainda não está consolidado. Vou, em média, duas vezes por ano à Europa desde os 17 anos de idade, com mais frequência à França e à Londres. Também passei uns meses na África, estou começando a adentrar nos Estados Unidos, Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, naturalmente, entre outros locais. Moro no meu sapato. Acho ótimo diversificar o leque, fazer música pra teatro e cinema, shows, produções, gravações etc... Eu gosto de todas as mídias e a forma como elas se comunicam entre si. Pra mim, música é movimento de corpo, é imagem, é conversa, é ouvir, é observar... Eu sou muito proativo, vivo viajando fisicamente e também viajando pela internet. Me envolvo com muita vontade em tudo que faço.

" - DJ Dolores o descreveu como ex-tímido. André Midani citou sua força de vontade e perseverança como definidoras de um profissional qualificado. Você acha que os músicos nordestinos estão com propostas diferenciadas numa região de folclore popular como a nossa? Por exemplo, você fusionaria ritmos regionais no seu som para entrar num nicho de mercado?

JS - Mercado é a última coisa que penso em um trabalho de criação. Toda música é regional. O artista cria a partir do contexto geográfico que ele está inserido. Isso está no meu inconsciente, mas que não necessariamente irei misturar maracatu com drum bass (que fazem parte de toda minha vida como referência e inspiração) para entrar em algum nicho de mercado. Os músicos nordestinos têm uma conexão direta com o mundo, com ligações que vêm de dentro pra fora e de fora pra dentro a todo instante. Recife, por exemplo, uma cidade com zona portuária super ativa, isso desde sempre. O Nordeste é muito rico musicalmente e avant garde.

" - Como foi o trabalho de concepção ritmica do Dia Santo, que não é linear, mas liga tudo num som equilibrado e de bom gosto?

JS - O ritmo em Dia Santo nao é algo racional nem cirúrgico. Fui gravando e tocando e deixando a música fluir como tem que ser. Eu partia dos beats inicialmente, gravando percussões e baterias acústicas e depois os outros instrumentos. Fui pensando em cenas e não em compassos. A bateria virou um batuque e as percussões cobriam os espaços dela e/ou criava texturas de percussões e colocava a bateria por cima. Elas se completam em timbres, levadas, texturas, grooves etc...

" - Quais os seus projetos futuros?

JS - Divulgar mais e mais meu álbum Dia Santo nesse país gigante e belo chamado Brasil e também aumentar as idas fora dele. Compor pra outras pessoas e com outros parceiros, produzir pra outros artistas, gravar outro disco, mas não agora... :) No momento estou compondo com artistas como o Momo, Kátia B, Paula Toller e sairá em breve também uma música no disco de estreia da cantora Bárbara Eugenia. Ah! Tocar na Paraíba antes. :) Quero muito!


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CONTATO: contatojamdasilva@gmail.com
JAM DA SILVA | DIA SANTO

16 de junho de 2010

MENOS, COPA, MENOS...


EXAGERO: Muita atenção (e dinheiro) é entregue ao futebol, esporte que enriquece poucos jogadores e atrai muitos pobres, principalmente de conteúdo; onde depositarão os bilhões usados na reconstrução da África do Sul, pós Copa do Mundo? | imagem: Placard

VALDÍVIA COSTA

Gosto da Copa do Mundo pra analisar o quanto pobres ainda somos. O quanto ainda temos a aprender e a sofrer nessa vida. Afinal, somos um povo necessitado de um evento mundial de futebol que nos una. Dizemos que somos patrióticos com a Copa, destacáveis mundialmente em alguma coisa.

O barulho de abelhas gigantes zunindo dentro dos estádios africanos é o da pobreza que assola a África do Sul, um país com a taxa de desemprego que gira em torno de 40%, segundo a Frente Anarquista Comunista Zalabaza (ZACF). Parece que o som das vuvuzelas é um mantra para nos encantar, enquanto a verdade vai pra longe das boas intenções.

O governo africano gastou mais de 8,2 bilhões de rands (cerca de R$ 2 bilhões) nessa empreitada da Copa. Conforme a ZACF, mais de 1 bilhão de rands foi para o desenvolvimento das infra-estruturas e 3 bilhões de rands para reformas e construções de estádios, que depois da Copa do Mundo jamais estarão lotados. Os outros 4 bilhões de rands não foram especificados onde estariam empregados, de acordo com a ZACF.

A Frente condena veementemente a hipocrisia do governo sul-africano, que apresenta este momento como uma oportunidade única para a melhoria da situação econômica e social das pessoas que vivem no país, assim como no resto do continente. Seria uma conversa para bovinos roncarem ou o discurso que os países pobres empregam aos seus habitantes para aceitarem um desprendimento gigante de verba ao futebol e não à erradicação da fome ou da Aids que atormenta os africanos?

Leiam trechos do texto divulgado pela ZACF:

Nos últimos cinco anos, os trabalhadores pobres têm vindo a manifestar a sua indignação e decepção face à incapacidade do governo para corrigir as enormes desigualdades sociais, organizando, em todo o país, mais de 8 mil manifestações para exigir serviços básicos (água, eletricidade, saúde...) e habitações dignas.

Esta distribuição dos custos, pelo Estado, é mais uma prova dos equívocos do modelo neoliberal capitalista e das suas políticas econômicas de “racionamento”[1], que só serviram para aprofundar as desigualdades e a pobreza. Apesar das afirmações anteriores, o governo reconheceu, recentemente, que "nunca foi a sua intenção" que este projeto chamado Copa do Mundo fosse beneficiário em termos sociais[2].

A África do Sul precisa desesperadamente de infra-estruturas públicas em grande escala, especialmente na área dos transportes públicos que estão quase totalmente ausentes em algumas cidades, incluindo Johanesburgo. O Gautrain (uma espécie de trem bala), lançado em 8 de junho, na véspera da Copa do Mundo, é provavelmente a grande ironia disto.

Num país onde a grande maioria das pessoas depende, cotidianamente, para percursos de longa distância, de táxis e lotações, sem condições mínimas de segurança, o Gautrain oferece rapidez, transporte de luxo para turistas e para aqueles que viajam entre Johanesburgo e Pretória, distante 54 km.

(...)

Em toda a África do Sul os municípios estão envolvidos em “esquemas” de revitalização urbana, acompanhados pelos seus inseparáveis programas de gentrificação. Em Johanesburgo, mais de 15 mil sem-teto e crianças de rua foram apanhadas e despejadas em "abrigos". Em Cape Town, autoridades do município expulsaram milhares de pessoas das zonas pobres e das favelas no âmbito do projeto "World Cup Vanity" (tornar a cidade agradável para a Copa do Mundo).

Nesta cidade tentou-se - em vão - expulsar de suas casas 10 mil moradores da favela Joe Slovo com o objetivo de esconder a população dos olhos dos turistas que viajam ao longo da rodovia N2. Em outros lugares, populares foram despejados para dar lugar aos estádios, estacionamentos para turistas, ou estações[3].

No Soweto, as estradas foram embelezadas ao longo das rotas turísticas e da sede da FIFA, enquanto as escolas ao redor continuam com as janelas quebradas e as instalações em ruínas. Apesar de muitos sul-africanos não terem caído neste "canto de sereia", outros são inundados e arrastados pela enxurrada de propaganda nacionalista que visa desviar a atenção do circo que é a Copa do Mundo.

Cada sexta-feira no país foi declarada “Dia do Futebol", onde a “nação” é incentivada (e os alunos forçados) a vestir camisas dos Bafana-Bafana (seleção nacional da África do Sul). Os carros são enfeitados com bandeiras, as pessoas aprendem a "diski dance", que é constantentemente demonstrado em todos os restaurantes turísticos.

Já é praxe comprar a mascote Zakumi. E quem se atrever a manifestar dúvidas sobre a Copa é maculado como antipatriota. O exemplo mais significativo disso tudo foi o apelo das autoridades aos grevistas do Sindicato dos Transportes (SATAWU), para que abandonassem as suas reivindicações pelo “interesse nacional"[4].

Num contexto em que quase um milhão de empregos desapareceram, só no ano passado, as declarações do governo, sobre a criação de mais de 400 mil postos de trabalho devido à Copa do Mundo, são descontextualizadas e ofensivas. Os empregos que foram criados, nesta euforia futebolística, são muitas vezes precários ou Contratos com Duração Determinada (CDD), por trabalhadores que não são sindicalizados e recebem salários muito abaixo do salário mínimo.

(...)

O município de Mbombela recebeu a informação, da polícia nacional, de que não seriam permitidos “encontros” durante a Copa. O conselho municipal da Cidade do Cabo informou que não continuaria a receber pedidos para organização de marchas, que “isso poderia ser um problema” durante a realização da Copa. Nos municípios de Nelson Mandela Bay e de Ethekwini, a polícia proibiu manifestações durante o período da Copa do Munde[5].

A Constituição da África do Sul, muitas vezes elogiada pelo seu caráter "progressista", está longe de ser a garantia de liberdade e de igualdade. Esta nova forma de repressão entra claramente em contradição com o direito constitucional à liberdade de expressão e de reunião.

No entanto, os movimentos sociais, em Johanesburgo, incluindo o Fórum Anti-Privatização e vários outros não desistiram, e obtiveram uma autorização para uma marcha e manifestação no dia da abertura da Copa, com a ajuda do Instituto para a Liberdade de Expressão. Porém, a marcha deverá ser confinada a três quilômetros do estádio, onde não atrairá a atenção da mídia.

Não foi apenas o Estado sul-africano que realizou uma repressão severa sobre os pobres e sobre qualquer atividade ou manifestação anti-Copa do Mundo, sob um disfarce que representa a África do Sul como um polvo que estende os seus tentáculos em convite a todos para que afluam em rebanhos aos seus hotéis de luxo, os quartos de hóspedes e salões de coquetéis, mas também o império criminal legal a que Josepp Blatter e seus amigos chamam FIFA, renomeada THIEFA (clube dos ladrões em inglês) pelo Fórum Social em Durban.

Prevendo com a Copa 2010 um lucro de aproximadamente 1,5 bilhões de euros, a FIFA já arrecadou mais de 1 bilhão apenas com os direitos de transmissão televisiva. Os estádios e as zonas circudantes foram entregues à FIFA durante o período do torneio (como “casulos livres de impostos”, áreas controladas e vigiadas pela FIFA e isentas do imposto normal e outras leis estaduais sul-africanas), incluindo estradas e pontos de acesso. Dessas regiões serão excluídas as pessoas que vendem produtos não licenciados da FIFA. Assim, os que acreditaram que, durante a Copa do Mundo, iriam aumentar a sua renda de sobreviventes, serão deixados de fora no frio "racionamento" neoliberal.

Mais: a FIFA, como proprietária exclusiva da marca Copa do Mundo e dos seus produtos derivados, dispõe de uma equipe com centenas de advogados e funcionários que percorrem o país para rastrear qualquer venda não autorizada e para fazer marketing da sua própria marca. Os produtos ilegais são apreendidos e os vendedores são presos, apesar do fato da maioria na África do Sul e do continente comprarem os seus produtos no setor do comércio informal. Porque muito poucos sul-africanos têm 400 rand (40 euros) para pagar pelas camisas das seleções e outras “engenhocas” da Copa.

Os jornalistas também foram efetivamente amordaçados neste evento. Na hora de se credenciarem, a FIFA incluia a aprovação formal de uma cláusula que impede as organizações de mídia de criticá-la, comprometendo claramente a liberdade de imprensa[6].

A ironia maior desta história toda é que o futebol era originalmente o esporte da classe trabalhadora. Ir assistir aos jogos nos estádios era uma atividade de baixo custo e de fácil acesso para as pessoas que escolhessem passar 90 minutos das suas vidas esquecendo o cotidiano sob a bota do patrão e do Estado.

Hoje, o futebol negócio e a Copa do Mundo trarão lucros exorbitantes para um pequeno grupo da elite mundial e nacional, com milhões de gastos desnecessários, especialmente em um momento de crise capitalista mundial, que cobram aos seus clientes-torcedores- espectadores milhares de rands, dólares, libras, euros etc., para assistirem futebolistas caindo em excesso e mergulhando em campos super bem tratados e que discutem, através de agentes parasitários, se são ou não dignos de seus salários mirabolantes. Kaká recebe mais de 10 milhões de euros por ano no Real Madri.

O jogo em si, que em muitos aspectos, mantém a sua beleza estética, perdeu a sua alma trabalhadora e foi reduzido a uma série de produtos destinados a serem explorados e consumidos. Bakunin disse que "as pessoas vão a igreja pelos mesmos motivos que vão a um bar: para hostilizar, para esquecer a sua miséria, para imaginar serem, por alguns minutos, também, livres e felizes”.

Talvez possamos dizer o mesmo do futebol negócio, com estas bandeiras nacionalistas agitadas e a sua cegueira, com as estridentes vuvuzelas. Deste modo parece mais fácil de se esquecer do dia a dia, de tomar parte na luta contra a injustiça e a desigualdade.

(...)

Abaixo a Copa do Mundo! Phansi [Abaixo] a repressão do Estado e do nacionalismo que nos divide! Phambili [Viva] a luta do povo contra a exploração e os lucros!






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Notas:
[1] See Star Business Report, Monday 7th June, 2010.
[2] http://antieviction.org.za/2010/03/25/telling-the-world-that-neither-this-city-nor-the-world-cup-works-for-us/
[3] http://www.politicsweb.co.za/politicsweb/view/politicsweb/en/page71654?oid=178399&sn=Detail
[4] http://www.sacsis.org.za/site/article/489.1
[5] http://www.sportsjournalists.co.uk/blog/?p=2336

Mais: UKZN; Antie Viction; Abahlali

Frente Anarquista Comunista Zalalaza (ZACF)
zacf@zabalaza.net
Postnet Suite 47, Private Bag X1, Fordsburg, 2033, África do Sul

Tradução > Liberdade à Solta

14 de junho de 2010

ANDINO RELAXA EM MARACAÍPE

INTROSPECTIVO: Até um cão sabe fazer terapia na praia. Texto de março de 2005. | imagem: Bico do Corvo

VALDÍVIA COSTA

O mar ganha o mundo em muitos seres. Entrega-se e joga-se em ondas que chegam nervosas à praia. Andino pensa que isso o relaxa. Ele é um cão, mas pensa. E olha, com imensa profundidade, o chegar dessa obsessão de chegar na praia, assim como a onda faz sempre.

O cão nota que todo mundo se comunica com o mar. Espanhóis imitam o guia turístico, que joga a quenga de coco no mar, antes mostrando a Andino. A persistência canina em entrar no mar, pegar a quenga e voltar pareceu-me uma verdadeira missão que o cão cumpria.

Ele persegue o alvo com olhos determinados. Até que analisa o momento certo de ir buscar o objeto. E traz de volta a quenga de coco, procurando quem será o próximo a jogar seu brinquedo no mar. Parece que ele quer um estímulo para se banhar salgado.

Depois de algumas horas se apresentando na praia de Maracaípe, o cão agora observa, silencioso e distante, o vai e vem das ondas. As espumas devem lhe contar alguma novidade dos outros oceanos.

É bem possível que Andino ache tentadora a atitude de observar o mar. E ele nem tem que lutar contra os dragões esfumaçantes da Conde da Boa Vista! Mas o cão sabe aproveitar o dia, relaxando, com seu execício físico repetitivo, que o cansará até a fome chegar.

No almoço, quando falta humanos bondosos que o abasteçam com comida caseira, ele se alimenta bem com suas companheiras de farra, as quengas. Segura com as patas dianteiras a casca, retira os excessos com dentadas e mete os caninos na carne branca do coco.

De pêlos brilhantes e porte atlético, Andino não se preocupa em procurar emprego nas redações e assessorias do Recife. Quando chega a tarde, a maré baixa indica que é época dele procurar uma toca. Hora de se esquentar e dormir o leve sono dos sobreviventes.

13 de junho de 2010

AMEAÇANDO CHEGAR


MEDROSO: Aquela pessoa que foge o tempo todo do amorrr. Texto de maio de 2003. | imagem: Masmorra Erótica

VALDÍVIA COSTA

Há um amor em mim que talvez nem eu o conheça. Talvez, ele não passe da porta, com aquela notável timidez dos amores desconhceidos. Um dia, quem sabe, ele não acene em minha direção, com uma súbita vontade de apresentar-se?

Eu sei que ele virá. Por isso guardo os ímpetos de conhecê-lo. Eu sei que, no mais tardar em alguns anos, ele despontará, sério, e me convencerá que existe a recíproca (verdadeira) do amor.

Por enquanto o noto. Mas finjo que é de outro ser ou de outro estado ao qual não me pretence ou nunca tenha sentido. Prefiro brincar com outras sensações. Uso-as e sou subtraído da vontade de amar.

É um desejo que me distrai a carne, é um beijo dado ao acaso ou um simples olhar que me prende por minutos. Eu não o conheço, mas sei do que é capaz. Vejo meus amigos, tão pacatos e passivos ao amor... vida conjugal e tal.

Alguns viciaram-se em amar. Saem de umas relações pegajosas e, logo em seguida, estão em outras. Assim é a vida quando se desleixa e deixa-se o amor instalar-se: romantismo e "eu te amo" em excesso. Quem não enjoa?

Não. Quero o amor assim, ameaçando chegar. Todas as vezes sou indiferente e bem próximo do encontro decisivo, eu desisto sempre. Seria eu intolerante, cauteloso ou tolo? Não sei. Mas, por via das dúvidas, quero conhecê-lo quando cessar em mim todas as sedes e gulas da vida.

Se isso vai ser por muito tempo não sei. Só sei que agora, o amor balançou-me a cabeça em sinal negativo, torceu o canto da boca, cruzou os braços e virou-se. Deve ter se recatado ao seu estado de paciência.

10 de junho de 2010

BREJO DAS FREIRAS MENOSPREZADO


BUCÓLICO - Charretes, cavalos e muito verde compõem telas maravilhosas, distribuídas num local onde a arquitetura antiga não é bem cuidada nem oferece um histórico que se possa acessar facilmente. | imagens: Val da Costa

VALDÍVIA COSTA

Um lugar lindo, com muito verde ao redor, águas termais curativas, fonte mineral e uma comidinha tipicamente sertaneja. Esta é a Estância Termal Brejo das Freiras, na cidade de São João do Rio do Peixe, distante cerca de 30 quilômetros de Cajazeiras. Construções ancestrais também estão lá, mas menosprezadas. Uns oito chalés estão abandonados. O imóvel mais importante do local, o convento onde sua história se inicia, está em ruínas. E nada, nada escrito sobre o Brejo.

A área é enorme, com 400 hectares, segundo os trabalhadores do local. Composta por uma arquitetura que eu não sei ainda qual é, mas muito comum nos conventos do início do século passado. Segundo o portal SNN Notícias, o Brejo foi construído em 1944, com 45 apartamentos, capacidade para 150 pessoas, duas fontes de águas termais, uma área de lazer com duas piscinas, quadra de vôlei, mini-campo de futebol, pista de cooper etc.

panorâmica
Um lugar tão rico e bonito e não tem um material informativo sobre o Brejo! Outro sinal de menosprezo. A Paraíba já está criando fama de não cuidar bem do seu patrimônio, vide o centro histórico da Capital, uma das mais antigas do Brasil, que foi revitalizado, em parte, há menos de 10 anos. Culpo diretamente os que não tiveram atitude cultural.

entrada
Para não dizer que não encontrei nada sobre o Brejo das Freiras, achei poucas ocorrências pelo pai Google. "Certa vez, lá nas lonjuras do tempo, José Américo de Almeida (Ele mesmo!) esteve no Brejo das Freiras, a aprazível estância termal do município de São João do Rio do Peixe", escreveu o blogueiro Dirceu Galvão, do Sete Candeeiros Cajá.

ruínas do convento
O jornal A União publicou, em maio de 2008, que "a história da Estância Termal de Brejo das Freiras, um verdadeiro oásis turístico localizado na região montanhosa de São João do Rio do Peixe, a 482 quilômetros da Capital, se confunde com a própria história do Sertão da Paraíba". Mas não expôs o motivo.

Apenas completou, publicitariamente: "isto porque, além da sua beleza panorâmica, as águas que fluem do subsolo rochoso, saem com uma temperatura de 40ºC, distribuída por toda estância, serve como revigorante para a pele, graças a sua riqueza medicinal".

No portal SNN foi onde encontrei mais informações, só que sobre o poder de suas águas milagrosas. "Devido à qualidade terapêutica das águas termominerais presentes nas duas fontes do hotel, uma delas termal e outra magnesiana, as duas são indicadas à cura de artrite, artrose, escrófula, reumatismo, dispepsia, anemia e todas as fraturas e luxações", diz o portal, mas sem citar a fonte.

Quem quiser corrigir o blog, por favor fique a vontade. Ou quem quiser escrever sobre a história do lugar, também estamos abertos. Mais fotos do lugar serão postadas no Flickr Zangarelhas até o próximo sábado, dia 12.

7 de junho de 2010

JORNALISMO DUVIDOSO


ENGESSADO - O jornalismo não muda, sempre se pautando pelo sensacionalismo para chamar a atenção e vender, vender, vender... | imagem: SMS do Jornal do Algarve

VALDÍVIA COSTA

Uma mancada nacional é um deslize mais debatido, visto que o alcance do que foi exposto é maior. Por isso mastigarei uma gafe jornalística que foi cometida pela maneira anti-profissional como tratamos nosso trabalho, de maneira geral. A jornalista Christina Fuscaldo, do portal Rolling Stone, escorregou no quiabo. Escreveu, no final de maio, que a “Paraíba não costuma chamar a atenção por sua música, seu teatro, seu cinema e sua literatura”. Só vou pontuar como é feito esse ‘desserviço’ atualmente.

No mínimo, a repórter foi pra campo nas pressas costumeiras com as quais tocamos o trabalho jornalístico hoje em dia. Talvez preocupada com a quentinha (ou com o restaurante, dependendo do cacife do meio jornalístico) ou com o local que ela mesma teria que encontrar para descansar, a jornalista não se atentou em perguntar, “é isso mesmo que falta à Paraíba”?

Não sei que tipo de tratamento o portal da Rolling Stone oferece aos jornalistas, mas sei como funciona uma editoria diária. Claro que o (a) editor (a) de Christina não é um imbecil que disse: “vai lá e volte num único dia, viu Christina?!”. Mas, com toda certeza, ela não veio para ficar tempo "de sobra", portanto, não teve como ver no ‘pai dos titubeantes’, o Google, se o Estado era tão inexpressivo assim nas artes.

Mas não vamos entrar nesse mérito também, pois os colegas Jãmarri Nogueira e Ricardo Anísio já deram respostas à matéria. Levando-se em conta que um jornalista vem a um evento no Nordeste já com ‘regalias’ que nem um pobre mortal da imprensa local possui, ela deve ter tido tempo sim para saber, ao menos, sobre Augusto dos Anjos.

Só não quero pensar que foi o editor que meteu o dedão lá, refez a 'cabeça’ da matéria com toda sua arrogância, sem consultá-la. Sim, isso é possível. Quantos supermegaeditores não costumam ‘costurar’ mal as palavras no lead para dar um ‘tcham’ ao texto? Os setores comerciais desses meios são idênticos, se impõem nas cabeças editoriais acima de qualquer apuração jornalística.

Lembro muito bem do colega fotojornalista Antônio Ronaldo repetindo dentro da redação: “por que os editores não entendem que o jornalismo é uma atividade intelectual e que pressão só causa desmantelo na reportagem?” Até hoje não encontrei quem me respondesse isso, com coerência humana. Eu desconfio da preguiça, tanto no olhar, que não percebe a gafe da repórter; quanto no trato com outro Estado, fazendo-o parecer sem importância.

Certo que ela não foi de todo má com a Paraíba. Até colocou o conteúdo geral a favor do evento, querendo engrandecê-lo. Mas faltou um olhar mais profissional mesmo. Daqueles que não se aquietam, vendo um texto duas, três, quatro vezes (com dois, três, quatro jornalistas). Porém o webjornalismo diário, como o rádio, precisa de atualizações rápidas. Algo errado? O meio sempre dá um ‘direito de resposta’.

No geral, o que pareceu foi que alguém da Rolling Stone, repórter ou editor, beliscou os paraibanos. Para criar uma webpolêmica, talvez... A revista, às vezes, erra nomes de entrevistados! O que se tira de conclusão é que o jornalismo não se conserta nessas displicências. Nem na famosa revista internacional do rock.

5 de junho de 2010

O AGRONEGÓCIO É LATIFÚNDIO


CAMUFLAGEM: Velhas práticas de negociações no campo recebem novos nomes, mas indicam a mesma relação subalterna entre os homens | imagem: Turcius

REDAÇÃO DO INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS (IHU - 04/06/2010)

“Não podemos entender a discussão do agronegócio sem primeiro compreender o que ele estabeleceu do ponto de vista produtivo e qual foi seu impacto na questão da concentração das propriedades de terra em países como o Brasil”. A afirmação é do professor e pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Marcos Pedlowski. Em entrevista à IHU On-Line, ele explica como a prática - uma maquiagem para a proteção do latifúndio no país - pode ser prejudicial ao mundo.

Para entender melhor essa visão, uma entrevista com o professor, que aponta o agronegócio como perigo destrutivo para o Brasil e países que tentam sair dessa dependência histórica e geopolítica dos ricos. "Isso foge do nosso alcance, porque, geralmente, ficamos só observando a relação entre agronegócio, latifúndio e reforma agrária”.

Marcos Pedlowski é professor associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, com atuação no âmbito do Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico do Centro de Ciências do Homem da UENF. | Imagem: Nibrahc



IHU On-Line - Quando, hisoricamente falando, surgiu a ideia de agronegócio?
Marcos Pedlowski – Academicamente existem artigos que citam o surgimento do termo agronegócio na década de 1950, mas isso não é verídico. O conselho da Revolução Verde, no qual o agronegócio é irmão-gêmeo, nasceu com a concepção de uma nova forma de produzir, menos dependente das intempéries. Por outro lado, isso estabelece a necessidade de uma nova integração no processo produtivo na agricultura. Porém, uma das promessas que a Revolução Verde trazia, a partir dessa maior cientificidade do processo produtivo, era o fim da fome, além da maior democracia no acesso à terra. Se olharmos no tempo, vemos que a Revolução Verde não acabou com a fome, e tão pouco democratizou a propriedade da terra no mundo. Pelo contrário, essa forma de produzir tem elevado o índice de concentração de terras na maior parte do planeta.

IHU - O agronegócio hoje está posicionado dentro de questões fundamentais no Brasil, como no debate do código florestal, e colocando o país como maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Como o senhor vê a relação entre esses temas vinculados ao agronegócio?
MP – Temos que ligar essa questão da Revolução Verde e do agronegócio às características que o capitalismo tem nos países de periferia como o Brasil. O termo que foi cunhado, a partir da década de 1960, para definir o que acontece em países como o nosso é modernização conservadora. Do ponto de vista da importação ou dos pacotes, hoje falamos em implementos agrícolas, agrotóxicos, sementes geneticamente modificadas, e isso tudo foi feito às custas da manutenção. Tenho visto alguns números sobre Coeficiente de Gini[1] no Brasil, uma curva que mede a igualdade e desigualdade. Quanto mais próximo o coeficiente está de zero, maior será a igualdade, quanto mais próximo de um, maior a desigualdade. Os últimos dados que temos são de 2006, e registram 0.87 no Brasil. Isso, na escala do coeficiente, é uma concentração bastante forte. O interessante é que, em 1996, o número era 0.856. Entre esses anos, tivemos um acréscimo de dois pontos, o que significa que aumentou a concentração da terra no país. Não podemos entender a discussão do agronegócio sem primeiro compreender o que ele estabeleceu do ponto de vista produtivo e qual foi seu impacto na questão da concentração das propriedades de terra em países como o Brasil, onde essas propriedades já eram muito concentradas. Normalmente, a faceta mais ideológica e que ficou muito mais popularizada a partir da década de 1990, no Brasil, do agronegócio como algo moderno, e da agricultura familiar como algo atrasado, não é fortuita, já que corre na onda neoliberal. A questão da maior dependência do mercado e a maior inserção no mercado mundial virou quase uma religião. De lá para cá, temos usado o agronegócio como símbolo de modernidade, quando, na verdade, temos um maior nível de contaminação de solos e recursos hídricos, contaminação de trabalhadores por agrotóxicos e por dispersão de sementes geneticamente modificadas, os desmatamentos no centro-oeste e na Amazônia e a questão do trabalho escravo. Tudo isso está concentrado no agronegócio, que é apenas uma faceta ou maquiagem para a manutenção do latifúndio no país.

IHU - Qual é o discurso dos latifundiários acerca do trabalho escravo?
MP – Isso tem sido liderado pela senadora Kátia Abreu, que fala que devemos discutir à exaustão o que é trabalho escravo. Também já ouvi o deputado do PPS de Rondônia, Rubens Moreira Mendes, no Encontro Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo em Brasília. Ele fala que se fôssemos cumprir todos os critérios da legislação vigente, nenhum pequeno produtor cumpriria as normas. Por isso, é complexo falar o que é trabalho escravo, o que deveria ser feito é um diálogo exaustivo para ajustar a realidade do campo à legislação. Quando temos documentação explícita e uma proposta de legislação mais rígida parada no congresso por força do latifúndio e do agronegócio, a PEC 438, quando sabemos exatamente o que é trabalho escravo, a escravidão por dívida ou a escravidão por não cumprimento da legislação trabalhista, não precisamos nos ater a normas mais estritas. O código civil e a constituição são suficientes para determinar e punir trabalho escravo, não há discussão. Sabemos que a legislação rediscutiu o que é trabalho escravo, o que é uma atitude de procrastinação das medidas que devem ser tomadas contra os escravocratas. É lamentável que a Banca Ruralista do Congresso esteja protegendo os produtores que viabilizam a sustentabilidade da agricultura agroexportadora nos países desenvolvidos. Não só se fala em rotular socialmente o álcool, mas também a soja e tudo mais. Enquanto existir desconfiança, ou certeza, o trabalho escravo permanecerá no Brasil, e hoje ele está espraiado por todas as regiões. O estado com maior apreensão de trabalho escravo atualmente é Santa Catarina. Não existe escravidão em pequenas propriedades familiares, quando encontramos esta prática, é em latifúndios e empresas do agrobusiness. É esta a discussão que deve ser feita. Rediscutir o trabalho escravo é dizer que não sabemos quando alguém está preso, quando existem capatazes e jagunços, quando o trabalhador está com os documentos retidos ou não sabe o quanto ganhou por um dia de trabalho.

IHU - Analisando as propostas colocadas em jogo em relação às eleições deste ano, quando a reforma agrária, no Brasil, será realizada?
MP – A Reforma Agrária não será realizável enquanto não se entender que o que está em jogo é o apoio que as administrações federais dão ao agronegócio. O agronegócio representa uma possibilidade de articulação com o mercado globalizado, o que, do meu ponto de vista, é uma aposta equivocada se considerarmos que os preços das principais commodities estão em depressão histórica. Porém, existe a insistência no financiamento do agronegócio. Este ano, por exemplo, a agricultura está recebendo um aporte financeiro do governo federal de 12 bilhões de reais para colocar em safra. Deste dinheiro, 10 bilhões estão indo para o agronegócio. No entanto, a dívida acumulada do agronegócio em 2008, é de 75 bilhões de reais, sendo que destes, 27 bilhões são dívidas da década de 1990. Essa é uma aposta que nos mantêm financiando o latifúndio, dependentes de uma agricultura globalizada em que temos uma depressão contínua dos valores reais dos produtos. E ainda há algo pior. Neste momento, com a crise na Europa e a ameaça de crise hipotecária na China, o Brasil pode ter um colapso em sua balança comercial por causa da aposta no agrobusiness. Por outro lado, quando lembramos, objetivamente, o que já havia sido feito pelo FHC e pelo Lula em termos de agronegócio, percebemos que não houve reforma agrária. O que tem acontecido, principalmente na Amazônia, é o Programa de Regularização de Posses de caráter muito precário e que não mexe no centro do problema, que é o Coeficiente de Gini. Este coeficiente aumentou durante o governo Lula, isto significa que não houve nenhuma reforma. Isso é interessante. O agronegócio é feito por um número pequeno de proprietários. Sabemos que proprietários com mais de mil hectares no Brasil, que são 1% dos proprietários, controlam 43% das terras no país. Não há, nesse horizonte, nenhuma proposta que reaja pela reforma agrária. Mas, na minha visão, quando analisamos especialmente os resultados surpreendentes que aparecem no censo agropecuário em 2008, e que causam certa estupefação, vemos que o grosso da produção, não apenas de alimentos, mas de commotidies, é da agricultura familiar. Isto nos mostra que a opção correta para o Brasil seria fazer uma corajosa reforma agrária e modernizar o campo brasileiro do ponto de vista das relações sociais e produtivas. Essa modernidade de agrotóxicos, desmatamentos, escravidão é falsa.

IHU - O que vem a ser o Neolatifúndio?
MP – O neolatifúndio é o que estão chamando de agronegócio. O problema é que ninguém gosta de ser chamado de latifundiário. É mais chique ser chamado de agroboy ou agro qualquer coisa. Eu pelo menos entendo a expressão como latifúndio com cara moderna, mas que continua sendo o latifúndio de sempre. Na literatura mexicana, quando se fala na questão da reforma agrária, usa-se o termo neolatifúndio como um filão para agronegócio. Mas quando se fala em agronegócio, não temos mais aquele latifundiário que forma sua empresa agrícola. Não é somente a questão local que influencia, temos ligação direta entre as grandes multinacionais de produção de sementes, de agrotóxicos, e essa ligação não para por aí. Temos quem recolhe a safra, - um exemplo são os produtos da Monsanto que vão para a Bunge - depois alguém exporta e vai parar no Carrefour, em Paris, ou no Walmart, em Washington. Se observarmos os cálculos, quem mais ganha com o agronegócio são as grandes cadeias de comercialização, que ficam com o grosso do que é gerado mundialmente. Isso foge do nosso alcance, porque, geralmente, ficamos só observando a relação entre agronegócio, latifúndio e reforma agrária. Esse seria moderno, tecnológico. A defesa desse novo latifúndio, na verdade, é outra forma de falar que não precisamos mais de reforma agrária.

Nota:
[1] Coeficiente de Gini é uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini. É comumente utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda mas pode ser usada para qualquer distribuição. Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (onde todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda, e as demais nada têm). O índice de Gini é o coeficiente expresso em pontos percentuais (é igual ao coeficiente multiplicado por 100).
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4 de junho de 2010

MENOS BANHO A TODOS


HÁBITO - Nesses dias a falta de água vai ser uma constante como no Sertão brasileiro. | imagem: SOS Rios do Brasil

VALDÍVIA COSTA

Dentre os tantos assuntos que envolvem o meio ambiente, a água é, sem dúvida, o tema que mais recorre e o que continua nos preocupando. Primeiro, porque temos gente demais no planeta, consumindo água demais. Segundo, porque esse recurso não nos dá equilíbrio, pode faltar ou exceder e nos matar com essa ausência ou abundância. Mas uma pesquisa de 2008 mostra que não somos nada ecológico no banho: nós, brasileiros, gastamos cinco vezes mais água que o indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

O volume indicado como suficiente pela OMS é um consumo diário de 40 litros por pessoa. No Brasil são consumidos 200 litros dia/pessoa, em média. A informação é resultado de uma pesquisa desenvolvida pela H2C Consultoria e Planejamento de Uso Racional da Água. Como principais problemas, faltam políticas globais de incentivo ao uso racional da água e as iniciativas existentes são voltadas ao aumento da produção de água e não à diminuição do consumo.

No entanto, há alternativas que permitiriam reduzir o consumo de água imediatamente, sem necessidade de novos investimentos. “Programas racionalizadores do uso da água foram empregados com sucesso por cidades como Nova York e Austin, nos EUA, e Cidade do México, por exemplo”, relata Paulo Costa, da H2C Consultoria e Planejamento de Uso Racional da Água.

De acordo com o consultor, a prefeitura de Nova York implementou um programa de incentivo à substituição de equipamentos gastadores de água, como bacias sanitárias, por outros, racionalizadores. O programa foi implementado, entre 1994 e 1996, com investimento de U$ 240 milhões, gerando uma economia de 288 milhões de litros/dia.

Os consumidores passaram a economizar até 35% na sua conta de água mensal. Além disso, os técnicos da prefeitura nova-iorquina constataram outra redução. Economizar 100 milhões de litros de água, por exemplo, sai até um quarto do custo exigido para captar, tratar e distribuir igual volume de água. Ou seja, é muito mais barato racionalizar do que aumentar a produção.
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colaboração: Revista Bem Público e site EcoTerra Brasil

3 de junho de 2010

TIA


DISCRETO: Um jeito simples de amar que me ensinou o amor. Texto de maio de 2003, para a inesquecível tia Raimunda. | foto: Val da Costa

VALDÍVIA COSTA

Mais tarde ela virá, com seu jeito manso, cobrir de cuidados o que lhe faltou durante as décadas de solidão. É o amor de uma criança o que ela deseja. Como carrasco de seu próprio infortúnio, não lamenta por não poder dar-se mais. Afaga os cabelos da sobrinha, puxa e ajeita o lençol do menino, olha os mosquiteiros, espanta as muriçocas e pensa: "o que será que sonham quando sorriem?".

Faz da palma da mão almofada e deita a cabeça nela, escorando o cotovelo na outra mão. "Será que um dia se lembrarão das canções que eu cantava?", se questiona, às vezes. Quando a noite pesa sua escuridão completa, ela dará mais alguns passos até a janela, afastará a cortina com uma única braçada e olhará para a rua com todos os suspiros de saudade.

Ao passarem os casais, abraçados, ela voltará ao interior da casa, arrastando os chinelos e lembrando das tantas vezes que recusou casamento, outros filhos. "Não. Meus pequenos amores estão aqui ao meu lado. Foi por eles que me apaixonei e é pra quem devoto o meu tempo... já que os que eu tive não vingaram", acalenta a vontade fugaz.

Ao ouvir as 11 badaladas do sino da igreja, ela já estará deitada em sua rede, baforando um forte cigarro de fumo de feira... sempre ouvindo algumas músicas no rádio de pilha. O chiadeiro do rádio e as sombras do mamoeiro se esfregando nas paredes laterais da janela a fazem divagar mais um pouco... dando aquelas três tragadas longas...

Antes de dormir, ela lembra e rumina seus mistérios inéditos e infindáveis. Não é a mãe quem prepara uma colorida rotina. Nem o pai quem mostra os lugares, conta histórias. É uma tia quem ensina o que mais soube (e o que descobre junto). É a personagem que não falta nos desenhos, ao lado de todo mundo, amando.

2 de junho de 2010

LIÇÃO DE POLÍCIA


APRENDIZ: Aspirante a policial aprende em um dia a ser sarcástico, característica marcante dos agentes de inteligência da corporação. Texto de setembro de 2003. | imagem: Severino Silva (Agência O Dia) No Borel
Menino de oito anos ganha autógrafo dos policiais do Bope


VALDÍVIA COSTA

Fabinho viu um filme de "polícia e bandido" que o impressionou muito e, no auge dos seus nove anos, o fez decidir: queria entrar para a polícia. Estudava no bairro do São José, em Campina Grande, e descobriu que a Central de Polícia ficava lá. Depois da aula desviou da rota costumeira e foi visitar a delegacia.

Na entrada deu de cara com um gato sarnento e ficou estupefato com o rabo cotó do bichinho, além de se comover com suas feridas. Mas pensou: "polícia não tem tempo de cuidar de bicho não!", tentando incorporar o perfil machão do cargo que queria ocupar.

Como não conhecia nada ali, entrou na primeira sala que viu, a Delegacia de Roubos e Furtos. Curioso, o garoto começou a sabatinar os agentes. Ele queria saber de tudo, desde onde guardavam as armas até onde prendiam os bandidos. Um dos agentes mais impacientes passou a tarefa de explicar as coisas ao pequeno aspirante a outro colega, que também não se mostrou menos tolerante.

O delegado viu o empurra-empurra e, pra se mostrar líder, chamou Fabinho. Mas não resistiu ao sacarsmo costumeiro reinante numa delegacia e brincou: "e na Polícia Militar é que tem emoção pra você explorar", ironizou o delegado.

Fabinho acabou sacando a tiração de onda e foi pra casa. Indignado por não ter recebido a devida atenção, ele desabafou sua ira numa redação de tema livre, a vingança esperada. Inspirou-se num texto virtuoso e virulento:

"Na polícia só tem enrolão. Eles fazem cara de mau, andam com revólver na cintura, mas não sabem nem pegar ladrão. Fui visitar uma delegacia e eles não me mostraram os presos. Disseram que era pra evitar um susto. Mas eu sei que a cadeia está é vazia..."

A professora riu e mostrou a redação a outra colega, que era casada com um dos policiais que tinha brincado com Fabinho. Ao comentar com os outros tiras bateu um remorso coletivo e eles chamaram o garoto pra mostra como eles trabalhavam de verdade.

Aquele corporativismo anti-fofoca que os policiais fazem irritou mais ainda o garoto. Porém, Fabinho foi gentil e igualmente satírico com os agentes ao responder: "mudei de ideia. Quero ser bailarino agora. Algum de vocês sabe dançar?".

1 de junho de 2010

ANÁLISE FELINA


SURPRESA: gato se assusta ao presenciar um crime e faz suas próprias análises sobre as pessoas. Texto de outubro de 2003. | imagem: Live Journal

VALDÍVIA COSTA

Acabo de chegar de um beco. Procurava restos de comida e, quem sabe, o cio de uma gata boêmia, quando presenciei algo estranho. No beco, tudo é assustador. Alguns cães ferozes, eternos inimigos, e, por vezes, bêbados malígnos que encontram em nossas caudas a diversão ridícula do abandono humano.

Mas vi quando o primeiro homem subiu no muro, me assustando. Estava na calha ao lado, em cima de uma casa abandonada, que era uma espécie de esconderijo de comidas velhas. De cima, pude ver o outro, que o encurralou do outro lado do muro. Novamente via alquelas bolas de fogo barulhentas, que derrubam homens e atraem carros e gente de toda parte.

Eu não penso, como o humano, mas tenho minha forma de analisar as situações. Vejo o mundo e os seres vivos. Eu sinto quando as pessoas são boas e noto quando elas não prestam. Por isso, fiquei curioso e desci onde o homem estava caído.

Perto dele, cheiro de sangue e de dor. Pareceu-me inofensivo. Dei-lhe algumas lambidas como consolo, mas senti o gosto da morte e me assustei. Morte cruel, impensada. Coisa que gato não entende. Preferi ir embora. Na certa, outros humanos o levarão daí para algum lugar onde o enterrerão. Nisso, nós somos parecidos, enterramos o descartável.

Hoje senti vontade de ser gente para entender porque humano mata o outro sem necessidade de saciar sua fome. Mas meu instinto selvagem me tirou desse estado contemplativo e agora sigo a presa, um rato suculento que já passou por mim duas vezes.

Vou matá-lo e a minha fome. Por que será que o homem que matou o outro não fez o mesmo? Seria ele mesmo homem? Já que ele pensa, pra que caçar sem comer? Deixa... Talvez ele seja um cachorro com aspecto diferente e eu tenha me livrado por pouco!