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3 de junho de 2010

TIA


DISCRETO: Um jeito simples de amar que me ensinou o amor. Texto de maio de 2003, para a inesquecível tia Raimunda. | foto: Val da Costa

VALDÍVIA COSTA

Mais tarde ela virá, com seu jeito manso, cobrir de cuidados o que lhe faltou durante as décadas de solidão. É o amor de uma criança o que ela deseja. Como carrasco de seu próprio infortúnio, não lamenta por não poder dar-se mais. Afaga os cabelos da sobrinha, puxa e ajeita o lençol do menino, olha os mosquiteiros, espanta as muriçocas e pensa: "o que será que sonham quando sorriem?".

Faz da palma da mão almofada e deita a cabeça nela, escorando o cotovelo na outra mão. "Será que um dia se lembrarão das canções que eu cantava?", se questiona, às vezes. Quando a noite pesa sua escuridão completa, ela dará mais alguns passos até a janela, afastará a cortina com uma única braçada e olhará para a rua com todos os suspiros de saudade.

Ao passarem os casais, abraçados, ela voltará ao interior da casa, arrastando os chinelos e lembrando das tantas vezes que recusou casamento, outros filhos. "Não. Meus pequenos amores estão aqui ao meu lado. Foi por eles que me apaixonei e é pra quem devoto o meu tempo... já que os que eu tive não vingaram", acalenta a vontade fugaz.

Ao ouvir as 11 badaladas do sino da igreja, ela já estará deitada em sua rede, baforando um forte cigarro de fumo de feira... sempre ouvindo algumas músicas no rádio de pilha. O chiadeiro do rádio e as sombras do mamoeiro se esfregando nas paredes laterais da janela a fazem divagar mais um pouco... dando aquelas três tragadas longas...

Antes de dormir, ela lembra e rumina seus mistérios inéditos e infindáveis. Não é a mãe quem prepara uma colorida rotina. Nem o pai quem mostra os lugares, conta histórias. É uma tia quem ensina o que mais soube (e o que descobre junto). É a personagem que não falta nos desenhos, ao lado de todo mundo, amando.

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