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11 de março de 2008

*opinião* A Periferia do mercado - FRED ZERO QUATRO



Quem acompanha os cadernos culturais dos grandes jornais ou até mesmo os quadros sobre comportamento e cultura dos programas de maior audiência das tvs – abertas ou por assinatura – tem ouvido e lido com muita frequência a expressão “estética da periferia”. Esse fenômeno à primeira vista poderia ser entendido como um grande avanço democrático, ou seja, uma revisão de postura por parte da grande mídia brasileira.

Confesso que tenho avaliado todo esse oba-oba, esse deslumbramento, essa exaltação com certo ceticismo. Acho mesmo que é um misto de oportunismo e hipocrisia, o que move os detentores dos meios, e a motivação última, inconfessa, pode ser essencialmente política. E o pior é que toda a encenação tem contado – como sempre – com a prestativa colaboração de um bom número de artistas e intelectuais do, digamos assim, centro.

Um badaladíssimo e muito talentoso artista plástico e designer gráfico – além de, segundo sua própria definição, “prático na inserção social” – me enviou uma mensagem muito gentil e educada, há alguns meses, convidando-me a participar de um projeto. Na condição de curador de uma espécie de exposição itinerante e interativa, ele solicitava as opiniões de pessoas que atuavam na área. Essas colaborações seriam, segundo ele, impressas num catálogo a ser distribuído durante a mostra.

No final ele dizia: “Achei melhor fazer algumas poucas perguntas para que cada um desse de maneira breve seu ponto de vista sobre este assunto” . Em seguida agradecia, pedia urgência a anexava 8 perguntas sobre o tema “pra você escolher pelo menos 3”.

As que eu escolhi foram estas:
1- Qual e a importância da estética que vem da periferia?
2- Como você percebe esse movimento de estética que vem da periferia e, cada vez mais, é aceita para o consumo amplo da sociedade?
3- Por que o mundo do poder está mais atento à voz da periferia?

E eis como as respondi:
1- No meio da década passada eu escrevi uma música que tinha um refrão inflamado, dizendo “não espere nada do centro, se a periferia está morta/ pois o que era velho no norte se torna novo no sul”. O saudoso Chico (Science) gostou tanto que se ofereceu pra cantar conosco na faixa, que foi lançada em 96, no disco GUENTANDO A ÔIA. Hoje, sinceramente, acho que existe muita embromação neste conceito de “periferia”. Em tempos de internet, MTV, celular praticamente de graça…Acho que em muitas instâncias a insistência em usar a suposta dicotomia centro/periferia é só mais uma forma dissimulada de camuflar a dimensão econômica e histórica do tecido social. Como diria Elio Gaspari, experiente pesquisador da fauna humana da América Latina, o que sempre se deu por essas bandas - e isso não tem mudado quase nada, a despeito dos avanços tecnológicos - foi uma dicotomia real entre CAVALCANTIS e CAVALGADOS. Acho que no momento atual, os Cavalcantis fingem que gostam - e até fazem questão de disseminar – de alguns tipos de estética que vêm de alguns Cavalgados, mas só dos tipos que não oferecem nenhum risco à manutenção da cavalgada…
2- Acho que os donos da mídia latinoamericana estão assustados, e com razão. Basta ouvir com alguma atenção algumas letras de bandas como Racionais MCs ou Faces da Morte (ou alguns compositores mais radicais de funk underground carioca, que fazem o gangsta americano parecer gospel), para ter certeza de que algo precisa ser feito pra tentar imunizar as periferias contra essas mensagens perigosas. Então que tal massificar Calypso, Calcinha Preta ou Marlboro? Nunca ouvi nem sequer MV Bill numa trilha de novela global…
3-Assim chegamos ao viés político da questão, que é essencial. Em várias regiões da América Latina, temos tendências semelhantes. A ascensão de líderes originários da base da pirâmide (cavalgados chegando ao poder pela primeira vez em séculos!) ou “oportunistas” disseminando um discurso e uma linha programática “populista”. Sem dúvida é um momento de ruptura histórica, que certamente tem reflexos no imaginário simbólico e cultural. Os “magos” do marketing político/eleitoral vêm sofrendo sucessivas - e humilhantes - derrotas nas urnas, justamente por relutarem em admitir que os cavalgados (a imensa maioria) estão cada vez mais arredios ao discurso e à lenga lenga empolada e aristocrática com a qual a elite política vinha se mantendo no poder séculos a fio. Então é natural que a mídia comece a rever seus conceitos…
Ao final agradeci muito educadamente a lembrança do meu nome. Fiquei aguardando os convites para a exposição, que aconteceu no Museu de Arte Moderna Aluisio Magalhães (Recife), e ganhou destaque em todos os veículos impressos e eletrônicos locais – assim como já havia ocorrido na versão carioca do projeto. Aguardo os convites até hoje…

Basta tomarmos como exemplo o que acontece com a música “de periferia” atual do Recife, para constatarmos que não é qualquer periferia que está na moda. As emissoras mais populares e campeãs de audiência tocam muita música “periférica” com letras altamente erotizadas, de duplo sentido, pornofonia pura. Os temas desses hits – os gêneros são variados, indo do pagode ao forró estilizado, passando pelo funk e pelo pseudobrega – são um verdadeiro festival de perversão reacionária, disseminando sexismo, homofobia, racismo e em alguns casos até a mais pura pedofilia. Entretanto, bandas como Devotos (pop/hardcore) e Faces do Subúrbio (rap/hip hop)– verdadeiros ícones da resistência e da consciência social do Alto José do Pinho –, assim como outras tantas que proliferam em morros e favelas espalhados por toda a cidade e que exploram a temática da exclusão e do preconceito de classes, não têm vez no dial. Essa distorção poderia muito bem ser corrigida se o poder público atendesse a uma antiga reivindicação da classe cultural recifense.

Na década de sessenta, a Câmara Municipal do Recife aprovou, liberou o orçamento e solicitou a instalação de uma emissora de rádio pública. O extinto Ministério das Comunicações chegou a autorizar a concessão, mas o prazo acabou vencendo sem que nada saísse do papel, por falta de vontade política de uma sucessão de prefeitos com postura mais liberal e privatista, reféns do lobby das emissoras comerciais.

No final da década de 90 houve uma mobilização de músicos, intelectuais e artistas em geral pela instalação da Rádio Frei Caneca, inclusive com manifestos públicos e abaixo-assinados. A imprensa cultural, embora constrangida, chegou a acompanhar e dar uma tímida cobertura.

Com a vitória do PT em 2000, a bandeira foi resgatada e abraçada pela gestão do secretário municipal de cultura, e eleita como prioridade no documento final da primeira Conferência Municipal de Cultura, realizada em 2003. Ou seja, é algo que não pode absolutamente ser ignorado.

Agora, o próprio prefeito instalou uma comissão para elaborar um formato para a rádio, mas por conta de alguns impasses mal conduzidos, não se chegou ainda a um relatório. Mais uma vez, corremos o risco de ver essa questão protelada e engavetada.
Curioso é como os cadernos de cultura locais vêm sendo complacentes com a péssima condução dessa bandeira histórica dos artistas, por parte da prefeitura. Afinal, nunca se viu por essas bandas um executivo municipal tão implacavelmente atacado e bombardeado todos os dias por toda a imprensa (essencialmente anti-petista).
A conclusão a que chegamos é que, se nossa imprensa cultural estivesse mesmo tão sinceramente encantada com as estéticas da periferia, não hesitaria em pressionar pela implantação urgente desse e de outros espaços públicos e democráticos de divulgação.

Acho que o exemplo recifense não é de forma alguma isolado. Pelo contrário, é emblemático de um jornalismo cultural politicamente parcial, hipócrita, inadvertidamente elitista e completamente comprometido com as demandas e os interesses dos eternos “cavalcantis” - ou seja, o grande capital privado.

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EXTRAÍDO DO SITE MERCADO CULTURAL

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