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26 de março de 2010

TATARANA E O SERTÃO SUTIL


ENVIEZADO - jagunço poético Riobaldo Tatarana dá moral a um iniciante em reportagens especiais, João Guimarães Rosa, que enfrentou cavalgadas e viagens gigantescas com um grupo sertanejo e transformou tudo numa poesia de mais de 500 páginas. | imagem: Michel Carlos

VALDÍVIA COSTA

Ouvir as histórias de um jagunço, dividido entre a brutalidade da lida com saqueadores e pensamentos sensíveis que o amolecem, é surpeendente. De imediato, até duvidamos dessa destreza do homem comum, mas o jagunço Riobaldo Tatarana prova o contrário. Com as histórias vivas, saltando em visão idosa, o cabra macho que matou e se apaixonou pela morte entra em cena.

Riobaldo quer contar algumas de suas experiências de vida. Se abriu pra um repórter também de idade avançada, mas iniciante na técnica de apuração em expedições, João Guimarães Rosa. Sem máscaras, o vaqueiro, acostumado a entender as pequenas mudanças de comportamento de cavalos e mosquitos, mostrou seus dois lados, o acre e o doce.


Pra falar a verdade, essa entrevista foi uma forma de reavivar tantos e tão bons ensinamentos de simplicidade que precisamos até em tempos de avanços humanos e de desenvolvimento econômico. Afinal, o homem tosco também é professor. Viva Grande Sertão: Veredas! | imagem (Rosa, de saída pra entrevista com Riobaldo): Blog do Escriba

DE ACORDO COM " - Como grandes conhecedores das paisagens sertanejas, os jagunços, como os vaqueiros, são parte da natureza. O que você tem a dizer sobre a fauna e a flora do Sertão?

RIOBALDO TATARANA - (...) Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa ainda encontra. Vaqueiros? Ao antes - a um, ao Chapadão do Urucuia - aonde tanto boi berra... ou o mais longe: vaqueiros do Brejo-Verde e do Córrego do Quebra-Quinaus: cavalos deles conversa cochicho - que se diz - para dar sisado conselho ao cavaleiro, quando não tem ninguém perto, capaz de escutar. Creio e não creio. Tem coisa e cousa, e o ó da raposa. Dali pra cá, o senhor vem, começos do Carinhanha e do Piratinga filho do Urucuia - que os dois, de dois, se dão as costas. Saem dos mesmos brejos, buritizais enormes. Por lá, sucuri geme. Cada surucuiú do grosso: voa corpo no veado e se enrosca nele, abofa - trinta palmos! Tudo em volta é um barro colador, que segura até casco de mula, arranca ferradura por ferradura. Com medo de mãe-cobra, se vê muito bicho retardar ponderado, paz de hora de poder água beber, esses escondidos atrás das touceiras de buritirana. Mas o sassafrás dá mato, guardando o poço; o que cheira um bom perfume. Jacaré grita uma, duas, as três vezes, rouco roncado. Jacaré choca - olhalhão, crespido do lamal, feio, mirando na gente. Eh, ele sabe se engordar. Nas lagoas aonde nem um de asas não pousa, por causa de jacará e da piranha serrafina. Ou outra - lagoa que nem abre o olho, de tanto junco. Daí, longe em longe, os brejos vão virando rios. Buritizal vem com eles, buriti se segue, segue. Para trocar de bacia, o senhor sobe, por ladeiras de beira-de-mesa, entra de bruto na chapada, chapadão que não se devolve mais. Água ali nenhuma não tem - só a que o senhor leva. Aquelas chapadas compridas, cheias de mutucas ferroando a gente...

" - Todo jagunço é corajoso, desbravador. Você é assim?

RT - Confesso. Eu cá não madruguei em ser corajoso, isto é: coragem em mim era variável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah, basta se olhar um minutinho no espelho - caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade! Mas minha competência foi comprada a todos custos, caminhou com os pés da idade. E, digo ao senhor, aquilo mesmo que a gente receia de fazer quando Deus manda, depois, quando o Diabo pode, se perfaz.

" - Você consegue ser poeta em suas memórias e histórias, ainda que duras, em algumas horas. Como você lida com a violência?

RT - A gente viemos do inferno - nós todos - compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance de graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros - as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esqeucer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.

" - Esse seu compadre Quelemém é seu mentor, como um filósofo da vida árida?

RT - ... é um homem fora de projetos. O senhor vá lá, na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A estrela D'alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo da cana. Senhor vê, no escuro, um quebra-peito - e é ele mesmo, já risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cuia de garapa e dá a ele lembranças minhas. Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele.

" - Como jagunço, homem que entende as linguagens naturais, empíricas, você acha importante a educação e seria um professor, por exemplo?

RT - ... eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão: me enviou para o Curralinho, para ter escola e morar em casa de um amigo dele, Nhô Maroto, cujo Gervásio Lé de Ataíde era o verdadeiro nome social. (...) Vai, acontece, ele me disse: "Baldo, você carecia mesmo de estudar e tirar carta-de-doutor, porque, para cuidar do trivial você jeito não tem. Você não é habilidoso." Isso que ele me disse me impressionou, que de seguida formei em pergunta, ao Mestre Lucas. Ele me olhou um tempo - era homem de tão justa regra, e de tão visível correto parecer, que não poupava ninguém: às vezes teve dia de dar em todos os meninos com a palmatória; e mesmo assim nenhum de nós não tinha raiva dele. Assim, Mestre Lucas me respondeu: "É certo. Mas o mais certo de tudo é que um professor de mão-cheia você dava..." E, desde o começo do segundo ano, ele me determinou de ajudar no corrido da instrução, eu explicava aos meninos menores as letras e a tabuada.

" - E Diadorim? Foi sua grande dúvida ou o sentimento mais puro que conseguiu ter na vida de jagunço?

RT - Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar do meu nariz e dos sonhos de minhas noites. (...) Diadorim - dirá o senhor: então, eu não notei viciice no modo dele me falar, me olhar, me querer-bem? Não, que não - fio e digo. Há-de-o, outras coisas... O senhor duvida? Ara, mitilhas, o senhor é pessoa feliz, vou me rir... Era que ele gostava de mim com a alma, entende? O Reinaldo. Diadorim, digo. Eh, ele sabia ser homem terrível. Suspa! O senhor viu onça: boca de lado e lado, raivável, pelos filhos? Viu rusgo de touro no alto do campo, brabejando; cobra jararacuçu emendando sete botes estalados, bando doido de queixadas se passantes, dando febre no mato? O senhor não viu o Reinaldo guerrear!... Essas coisas se acreditam. O demônio na rua, no meio do redemunho...

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