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12 de maio de 2010

SURDA LÂMINA


EXPRESSIONISTA - A imagem do sentimento retido ficou pertubadora na xilogravura do carioca nascido em 1895, Oswaldo Goeldi (acima, Abandono), que teve importantes relações com um dos expressionistas da chamada "primeira geração", pré-guerra: Alfred Kubin, genial gravador e desenhista que participou d'O Cavaleiro Azul, o seminal grupo no qual estavam Wassily Kandinsky e Franz Marc. Texto indignado, depois das mortes de moradores de rua em setembro de 2004, como nesta semana. | imagem: Revista Carcasse

VALDÍVIA COSTA

Zombou o bruto do fraco pela falta, completa escassez, de subterfúgios rudes ou atitudes truculentas no indefeso. Primeiro o fogo que consumiu tantos nas calçadas-abrigos. Depois os tiros, embaixo do viaduto. A agressividade foi a mola propulsora para o assassino sentir-se bem. Sua ignorância hospedava um ser traiçoeiro que faria qualquer um estrebuchar de raiva: a leviandade.

Dias e noites pra uma pessoa desprovida de sensibilidades eram chagas abertas que doiam e inflamavam com cenas de amor e alegria. Para ele, sorrir soava falso. Ninguém entendia que seus modos bruscos e seu linguajar intimidativo envoltava um desespero desconhecido, apesar de natural em seu íntimo.

Se não o julgassem tanto de criminoso teria certeza de estar agindo certo. Em entrevistas imaginárias a uma televisão futurística, que daria espaço ao acusado, diria que a violência aplicada em doses certas e precisas era o antídoto de todas as mazelas do mundo. "Para um mendigo sem nenhuma perspectiva de vida, não seria um alívio a morte através de um único golpe?", questionaria o assassino à repórter gostosona.

"E o que você me diz da da sensação frenética e orgâstica de destrinchar víceras e pele de alguém que não merece viver por ser pobre?", pensaria a repórter sabichona, sem perguntar por aí. O medo havia recuado quando a jornalista encarou nos olhos a dupla personalidade daquele justiceiro às avessas. Mas ela não conseguiu pegar a fala em que ele descreve o regozijamento que sentiu ao matar miseráveis.

Mulheres, crianças, animais e até estruturas públicas encaram esses assassinos diuturnamente, viram alvo para sua surda lâmina. Tacapeando certezas claras demais em suas cabeças confusas de psicopatias salientes, esses sujeitos enaltecem suas situações de ódio pelo humano sujo, matrapilho, que enfeia as cidades. Momentos em que o homem se deixava vencer apenas pelo seu estado torpe de brutalidade.

Mesmo entre jornalistas e psicólogos, esse ser carregado não informa, direta ou indiretamente, que bicho se apossou do ser humano para matar semelhantes inofensivos. Nem a pior das feras mata sem o intuito da caça, da disputa ou da própria sobrevivência. Nós, bichos racionais, somos herdeiros da febre alucinante dos loucos homicidas. Carregamos esse desejo de sufocar a vida do outro.

Tudo denuncia a barbárie. O caos sentou sua poeira densa na calçada dos desabrigados. Uma população esquecida, embora proliferada; invisível, mas útil nesses anos eleitoreiros. "Somente quando penso em fazê-los notados é que me culpam e me julgam pela butalidade", pensa o assassino, engrenagem rota do nosso mundo.

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