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20 de janeiro de 2010

WANDO, O NÃO-CANTOR


ARTISTA - Wando não sabe tocar, cantar, dançar, pintar, esculpir, compor (nem escrever), mas sabe fazer um público gostar dele, de graça | imagem: Val da Costa

Wando é um adolescente de 13 anos, mas aparenta ter cinco ou seis. Dizem que foi um trauma que atrofiou seu crescimento. É um menino negro que não fala, mas escuta, e é popularíssimo. Se falasse, seria eleito vereador ou algo assim. Todos conhecem Wando na Feira Central de Campina Grande-PB. Ele vive a andar, chupando o polegar, com uma camisa pendurada no ombro (que às vezes ele perde) e uma barriga grande, exibicionista.

Ainda esta semana, quando retornava pra casa, lá estava Wando no comércio de ferragens do vizinho. Ouvi quando um dos ajudantes de Paulinho, dono da loja, disse: "olha o que Wando fez", mostrando o tranquina com uma tarja prateada que ele mesmo tinha pintado no peito, de tinta óleo, vale salientar. E haja gestos desordenados, de uma linguagem que não é a Libras, mas algo parecido, pra explicar o que o artista pensou ter pintado em seu corpo-tela.

Neste mesmo dia teve um blecaute lá em casa, por volta das 16h00. Achei estranho, ainda mais porque as serralharias continuaram funcionando. Dava pra ouvir as serras tocando o seu heave nos metais. Pensei que o levado do Wando seria ruim o suficiente pra estar envolvido naquele apagão sem sentido. Toni ainda duvidou. Mas resolveu perguntar, do alto do segundo andar, onde moramos, ao pai de Wando, o Buldogue, se a chave de energia geral, lá embaixo, em frente a casa deles, estava desligada. Estava!

Quem desligou a chave? Wando, que se entregou sorrindo e sem jeito. Mas Buldogue não quis saber e jogou a ameaça: "se você mexer aí de novo eu toro sua munheca, tá ouvindo Wando?!" O menino balançou a cabeça imediatamente e ficou por ali, desconfiado, olhando o chão. Não ficamos zangados. Pelo contrário, rimos muito. Descobri que tinha sido ele porque de outra vez o pegamos com a mão na massa, Toni reclamou... foi uma onda.

Antes desses episódios, Wando ganhou uma pipa toda rasgada de Toni. A partir desse dia, nasceu um ídolo para Wando. Toda vida que Toni sai, quando o garoto está na rua, corre sorrindo, imitando uma guitarra com as mãos na roupa, tocando a ilusão da infância. Às vezes rola um abraço. Quando o artista da rua está carente, abraça todo mundo, melando a todos por igual, com graxa de bicicleta.

Essa é a matéria-prima predileta de Wando. Embaixo do prédio onde moro, o proprietário do imóvel, Seu João, conserta bicicletas o dia todo. Quando não está comendo, pedindo comida aos feirantes ou sendo procurado pelo pai aos berros, Wando é ajudante de Seu João. Sem que o bicicleteiro saiba. Por que, quando Seu João percebe que Wando está por perto mexendo naqueles milhões de parafusos, começa a dedurá-lo pra o pai.

Buldogue larga os ferros de lado, vem com tudo pra cima de Wando, que, assustado, receioso de levar uma surra de chinelo, alisa o queixo diversas vezes dizendo "hã-hã-hã-hã", que significa um pedido de desculpa e um "por favor, pai, não me bata!". O castigo de Wando é ficar trancado em casa.

Ele, o pai e um irmão de 15 anos moram num vão único, que é também a loja de Buldogue consertar portões de ferro. Acredito que não tenham saneamento, pois quando eles tomam banho, a água ultrapassa os portões fechados pra rua. O lugar é na Cova da Onça, antigo beco perigoso da cidade, hoje apenas uma rua de pessoas carentes, bêbados, prostitutas.

Acredito que a situação dessa família é mais de desorganização do que pobreza. Eles têm o que vestir, o que comer, o pai trabalha, ganha dinheiro. Mas nenhum dos adolescentes de Buldogue estuda. À noite, quando todos estão jantando, por volta das 19h00, Wando vai dormir. Na carência de uma mãe, que dizem, ele nunca conheceu, o garoto passa alguns minutos se auto-embalando numa cantiga de ninar. "A-a-a-a-a... a-a-a-a-a-a..."

A música mais conhecida da Feira balança também meus pensamentos noturnos de solidão e desapego. Como se pode ser feliz sem nada do que pensamos ser, de fato, essencial? Ou o sorriso de Wando não é de alegria e sim de ator, já que ele é um artista?
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nota: Ficou fã de Wando? Tem mais fotos dele no flickr Zangarelhas (slides à esquerda)

6 comentários:

Anônimo disse...

Val, como vc sabe, estou sempre acompanhando o "De acordo com". E por isso posso dizer que essa materia do Wando ficou muito boa (muito massa). Adorei. Parabéns!

Anônimo disse...

Sim... ia esquecendo, adorei o lay out novo! E as matérias continuam ótimas.

De acordo com disse...

Wando é eterno, Leidi. ;-D

curtasegrossas disse...

Quero ler essa história no livro que vc escreverá sobre os personagens da Feira Cenral de Campina Grande! Apesar da história ser triste, a forma como vc narrou a deixou deliciosa.

Flaw Mendes disse...

"Wando é eterno, Leidi. ;-D" pela literatura do seu texto, lindo. Senti um arrepio, pois é a segunda vez que esse menino me aparece aos olhos, 1ª: um amigo o fotografou depois de ser surpreendido por ele gesticulando o pedido de uma foto dele com o pai, e agora com você. Mas só depois de seu texto é que percebi que "Ele" já havia nascido em mim há muito tempo... Tenho em mente a criação de uma HQ, cujo personagem é um menino que vive na Feira Central de CG... Gostaria de te apresentar esse "projeto" que por hora está só em minha mente, mas muito recorrente... Entro em contato.

Aninha Santos disse...

Ô Val, e depois de um texto desses tem como não virar fã do Wando?! Fiquei entre um sorriso involuntário de ternura e um apertinho no coração... Muito bom o texto! Também amei a cara nova do blog. Beijo grande!