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1 de março de 2010

VIDA DOS OUTROS


APAIXONANTES - Começamos a semana homenageando as mulheres, as guerreiras das sutilezas, e ao feminino por gerar e espelhar esperanças para a humanidade. Essa crônica é fruto das investigações policiais de início de carreira de repórter (2003) | imagem: Valmir Gamela

VALDÍVIA COSTA

Quer saber da vida de Lúcia de Fátima? Uma mulher de periferia, com seus problemas estéreis de soluções. A vida para ela é cronometrada na angústia, pautada na miséria. Mesmo sem querer fique sabendo que, para Lúcia, o dia seria ideal se tivesse 30 horas. Daria mais tempo para ela cuidar da casa, dos filhos, do emprego na fábrica e ainda curtir umas e outras com sua turma.

Quem quiser pode ver seu cotidiano metódico, envolto pelas sombras vagas da periferia, muitas vezes carregado de medo das possíveis armadilhas da vida regrada e precavida da comunidade. É cansativo acordar ainda de madrugada e preparar, em minutos, o resto do dia. Mas Lúcia consegue. Ela precisa sair e deixar a comida dos três filhos semi-pronta pra filha mais velha completar o cozimento ao voltar do colégio.

Os filhos, se alguém quer saber, são a maior preocupação de Lúcia. Administrando a casa à distância, Lúcia percebe os meninos crescerem sem uma figura paterna. Nem a luz do sol ainda acende o dia quando chega o ônibus da fábrica onde ela trabalha. Com mais de 40 colegas, a mulher anônima segue rumo a uma fábrica de calçados. A funcionária enfardada entra em cena, a mãe recolhe os receios da vida. Começa mais um dia de chão de fábrica.

O acabamento de de mais de 500 pares de sapatos por dia foi feito pela funcionária modelo: a ágil, organizada e concentrada Lúcia. Que importância tem se o filho dela caçula, àquela hora da manhã, já está chorando por causa dos beliscões da assistente da creche? À Lúcia, só interessa cumprir sua meta produtiva daquele dia. Se ela se distrai seu supervisor corta o prêmio de produtividade no final do mês.

Talvez algum outro profissional queira saber que Lúcia passa 12 horas fora de casa. A maior parte desse tempo, ela passa sentada, costurando calçados. E os seus pequenos descalços de sonhos. Ela sabe o que é um sonho, pois já viveu na rua e desejou estar na vida em que se encontra, ganhando dinheiro e pagando as contas. Quem desejaria pagar contas? Lúcia de Fátima quis e conseguiu.

O filho do meio de Lúcia é ruim. A mãe o condenou. Mas quem tem algo a ver com isso? A mãe cura as rebeldias do filho com as mesmas surras que a vida lhe deu. Descobrir um outro lado do seu filho é pensamento demasiadamente complexo para Lúcia. A guia espiritual fala com ela uma vez por semana, no terreiro de mãe Rita. Mesmo sabendo que pouco se pode fazer com o destino, ela pede, diuturnamente, proteção à prole.

E lá vai Lúcia. Todos os dias, a mesma mulher, mãe, operária, filha... Quando ela se sente estressada, sabe o que faz? Quem quer saber? Mas Lúcia é categórica. Ela compra uma garrafa de cachaça, liga o som e convida os vizinhos pra festa! Essa é a autêntica Lúcia de Fátima e é só assim que dá pra ela viver. Mas a quem interessa saber?

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