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28 de outubro de 2010

STREET ARTE


INTERATIVO - O conceito de arte de rua é modificável num cenário de pobreza educacional e abandono. Texto (jun/2004) | imagens: Above e Banksy


VALDÍVIA COSTA 

Quem passou pelo centro de Campina Grande, lá pela Praça da Bandeira, à tarde, numa semana de agosto, viu uma cena que não muito comum na cidade: artistas de rua. Um homem auto-nomeado “Alagoas”  e a sua filha Islânia, a Nêga. O pai fazia questão de falar alto que tinha 36 anos e sua filha 11. Comentou, de forma exagerada e machista, que tinha 76 filhos de 46 mulheres diferentes. 

Quem viu aquelas cenas “artísticas” com outros olhos percebeu que nem a Nêga nem Alagoas são profissionais que se possam aplaudir pelo talento do contorcionismo, prática que requer muita disciplina, responsabilidade e segurança, requisitos que os dois não utilizaram. Porém, valeu a pena até ter dado uma gorjeta aos dois por contorcerem-se de forma necessária perante as crises econômicas (não fosse os sussurros dos mais desconfiados, suspeitando de exploração do trabalho infantil). Como um misto de “faz-coisas-impossíveis-com-o-corpo” e vendedor de pomada e sabonete naturais, Alagoas disse levar a cultura da arte de rua em praticamente todas as cidades do Brasil. Novamente com aquele orgulho de quem já muito rodou, ele mostra as fotos tiradas ao lado de Jô Soares e comenta sobre as passagens de seus shows performáticos pela Ana Maria Braga, Ratinho e Altas Horas (com o Serginho “Groisam”, como ele diz). 

Ao arriscar a pele se atirando em um círculo com mais de dez facas pontiagudas espetadas, o artista de rua consegue juntar, em 10 minutos, um público de aproximadamente 100 pessoas. Nem a greve dos professores que circulava ao redor da praça conseguiu atrair tanto a atenção! E tome chicotada para “despertar” mulher preguiçosa! Esse é o verdadeiro show da vida de Alagoas, no qual a filha dele é uma atração. Geralmente com duas crianças, o artista anda sem parar dentro da roda, que ele manda apertar cada vez mais, “para ficar melhor de ver a presepada”. E o povo vai chegando, comprando uma pomadinha, um sabonetinho e dando um real para ver a Nêga se enrolando dentro de uma mala. No final do show, Alagoas diz ter conseguido o sustento do dia para pagar a diária do hotel e comprar o alimento da família. 

O público notou que a menina estava sem graça, meio que forçada a continuar com o espetáculo. Mas, tanto ela quanto o povo, fingiram que não havia nada demais naquilo. Talvez a Nêga já estivesse se cansando daquele blá-blá-blá do pai, de conseguir a vida lhe usando um pouco. Ou talvez fosse só aquela febre que ela insistia em mostrar para ele que estava a incomodando. Alagoas, sempre firme, repetia: “o show não pode parar” e todo mundo aplaudia. Estaria Islânia, no auge da sua infância, sentindo o peso de ser uma moleta para os pais? E lá vão pai e filha, com sessões cansativas e expostos ao sol e à boa vontade do público de rua. Assim como os indigentes que colocam os filhos na calçada para atrair a atenção das pessoas, que geralmente se compadecem e dão esmola, Alagoas e a Nêga dão o tom opaco à tela de miséria na qual se forma o país. Apesar dele enfatizar que vai ficar só três dias na cidade por causa das aulas de Islânia, não é isso que ela demonstra ao soltar os cabelos, baixar a cabeça e começar as lentas cambalhotas em direção à vida nas ruas, dia após dia, cidade após cidade.

Talvez o pai nem tenha culpa por instigar à menina a continuar nos shows de rua. Talvez ela esteja estudando mesmo. E talvez ela mesma queria estar ao lado dele. Em mais uma questão hipotética, o que pode trazer de bons frutos para Islânia aquelas cambalhotas entre o passar dos anos? O que realmente de construtivo pode ter na forma como eles praticam esta arte, que chega a obrigar a filha de 11 anos a estar se locomovendo em busca do sustento da família? De novo, Alagoas responde com o orgulho que o faz ser indiferente à verdadeira vontade da filha: “ela é preparada e treinada”. Teria alguma ligação desta “arte adestrada” com o próprio marketing que ele sabe articular para vender seus produtos entre as apresentações da filha? Nada que venha a intervir na arte de rua, realizada entre adultos, que decidiram seguir por ela. Só dúvidas para com as crianças.

Esses pequenos são jogados na vida de forma irresponsável, como Alagoas joga o seu chicote para cortar pequenos pedaços de jornal, chegando a machucar quem se atreve a ser voluntário. De repente, num futuro próximo, Islânia pode criar a ferida da ignorância. E esta, a pomada, “feita de extratos vegetais pelos índios do Pará”, comercializada pelo pai dela, pode ser um paliativo, mas jamais um antídoto pra sanar a estupidez.

(As imagens desses dois artistas de rua, Above e Banksy, são uma pequena mostra do que a criatividade humana alcança, mesmo quando o visual ou a vida não contribuem.)