As pás não pararam de trabalhar durante alguns dias... | imagens: Val da Costa |
# Bega foi nosso vizinho durante alguns anos. Morava num quartinho na estimada Cova da Onça, Feira Central de Campina Grande-PB. Uns dizem que ele morreu na rua; outros comentam que a irmã o levou pra casa. Real mesmo foi o que ele deixou pra trás: dois caminhões de lixo.
Bem que eu achava estranho... Ele entrava em casa subindo. Como alguém entra num único andar simulando que está subindo uma escada? Desconfiávamos que ele colecionava materiais reciclados em casa, porque todo catador sempre guarda algumas coisas... mas daí a achar que o que Bega subia ao entrar no quartinho era uma montanha de lixo, era demais.
Não eram sacos gigantes de plásticos dos mais diversos. Nem caixas e mais caixas de tecidos de todo tipo. Muito menos algo que parecesse um mini depósito de materiais reutilizáveis. Era lixo do mais autêntico e molhado. Lixo com chorume, amontanhado de coisas de tempos remotos, talvez até de antes dos anos 1980.
Buldogue se prontificou a "limpar" o quartinho em troca de uma dinheirinho. Ele subestimou a capacidade humana de criar e reter lixo. Em meio as pazadas que todos deram ao longo de uma semana de retirada desse material, Buldogue era o mais empenhado a dissolver aquele acúmulo bestial que fazia a população de rato migrar pra o seu quartinho (ao lado desse de Bega).
O homem é surpreendente com suas criações e as ausências delas. O lixo que tanto nos incomoda ao ponto de mandá-lo para fora de nossas casas quase diariamente, era posto para dentro daquele quartinho. Por que Bega se misturava ao lixo?
Era um solitário. Um sujeito cabisbaixo, que andava todo roto, como se tivesse tomado um banho de ferrugem. Catador no sentido menos profissional da palavra. Um tipo sem rosto, de cabelos grudados, como num rasta de sujeiras mil... (parece que não tinha dentes, pela fala...)
Talvez tivesse seus motivos para o isolamento. Às vezes, gente se mostra esfinge. Viver como a maioria vive, ter hábitos de higiene e organização é ultraje! Gente que come e vive do lixo reflete num silêncio esquartejado pela chegada do próximo caminhão.
Buldogue e mais uns oito homens dispostos terminaram de encher o segundo caminhão de lixo depois de muito desconforto. Bega era um catador simples, que saia de noite com um espaço oco no lugar da barriga, tossindo rouco... Talvez fosse sujo por causa de um estado de ser que ele próprio rejeitasse...
Não se sabe para onde, de fato, ele foi. Mas ficou o seu legado, o lixo. De uma certa forma, de maneira mais distribuída, esquematizada, a gente também expele a mesma quantidade de resíduos sólidos ao longo da vida. Bega apenas inverteu o movimento.
Fico confusa, sem saber o que é correto, se o que fazemos ou o que Bega fez com o lixo. (Talvez, se eu triturar tudo no liquidificador e servir para a Terra acostumar e engolir mais rápido...)
#valdíviaCosta
3 comentários:
Quando voltamos ao lixo que criamos, perdemos a noção de civilidade e isso não é ser/estar nojento, é não saber mais como o 'resto' mundo funciona. Pra ele, o mundo é o que ele vive e 'nós' é que somos estranhos.
Adoro essas suas histórias da feira! Tão instigante! Faz-me lembrar de algo que "não está no gibi!" Ainda! hehehhe
Oi, Val. Essa história me fez muita impressão e seu texto está muito bem escrito... seria ótimo roteiro para um curta-metragem. =)
Esse texto também me fez lembrar de um documentário da Agnes varda, chamado de "Os Catadores e a Catadora", que trata das pessoas que catam coisas na rua, seja alimentos ou objetos para os mais variados fins. Se você não viu vale a pena.
Um abraço!
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